segunda-feira, 30 de maio de 2022

Silly walks in the park

Vindos de duas diagonais convergentes, chegaríamos em simultâneo à bifurcação se eu não atrasasse ligeiramente o passo, menos por amabilidade do que misantropia. De modo que fui no seu encalço durante os seguintes duzentos metros, como uma sombra, porque não havia maneira de nos distanciarmos, tal a sincronia de andamentos. Na bifurcação seguinte, para fugir ao constrangimento, tomei o caminho que ele não seguira e voltámos a ser caminhantes autónomos durante dez minutos. Encontrámo-nos de novo quando os caminhos tornaram a convergir, ele chegando primeiro do que eu pela mesma margem de tempo que eu lhe concedera antes (poderíamos ter conversado sobre a grande probabilidade de os dois percursos terem exactamente a mesma distância, mas não o fizemos, claro), e lá me resignei a ser novamente sombra. As alternativas eram voltar para trás ou ficar ali especado um minuto ou dois e não me apeteciam. Na verdade, dali em diante poderia ter sido sombra no sentido de mimo, porque naquela parte do trajecto ele accionou a modalidade desportiva da sua caminhada, acompanhando os passos com sequências de movimentos vigorosos e alternados de braços e pernas, saltinhos, agachamentos, inspirações e expirações, sempre sem parar nem alterar a cadência. Abstive-me de o imitar não por aversão ao exercício físico mas porque, se fossemos dois, aquilo deixaria de ser desporto e passaria a ser uma repartição itinerante do ministério das silly walks.

Felizmente chegámos ao banco onde eu tencionava pousar a ler e o risco de uma tarde montypythoniana reduziu-se consideravelmente. Eu sentei-me e ele prosseguiu.

Para trás ficavam as sucessivas emanações musicais de que se faz a humanidade domingueira e de que eu vinha fugindo, mudando de posto sempre que alguém nas redondezas carregava no play. O último banco revelou-se bom refúgio. À minha volta uma frágil mas eficaz barreira de verde. No ar apenas o canto dos pássaros, o murmúrio quase exaurido do rio e as vozes da minha cabeça. No livro, a personagem do rapaz deixara de sofrer como antes com as extinções das espécies, o apocalipse climático e a impassibilidade humana e passara a aproveitar o tempo para se deslumbrar com o que restava da natureza e tentar transmitir esse deslumbramento. (Uma nova estratégia, menos dorida, para o mesmo objectivo de mobilização.) Eu, sem dúvida sugestionado, estava agora a sentir igual deslumbramento — e tudo foi levado a um apogeu quando o meu desconhecido compagnon de route, regressado para fazer o sentido inverso do percurso, cruzou o meu olhar com um cumprimento e o sorriso mais amável, franco e caloroso que neste século recebi. Se em algum momento o imaginara constrangido pela minha involuntária perseguição, ele encarregava-se de me mostrar o contrário.

Quando desapareceu na curva ao longe, chegou uma brisa fria e com ela a banda sonora distorcida da existência, feita de camadas sobrepostas de má música (toda a música é má quando é imposta). Vim-me embora lendo enquanto andava, para não perder a tarde, como um exegeta ambulante de escritos sagrados, arriscando tornar-me anedota como Tales de Mileto, mas notando com ironia que afinal também eu não sentia constrangimento algum com o meu próprio modo montypythoniano de me deslocar nos caminhos.

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