segunda-feira, 21 de novembro de 2011

Irritações 2

Ignoro como seja Vasco Pulido Valente na sua existência real. Apenas conheço a persona que se projecta a partir dos textos que ele escreve. E esta por vezes* faz-me pensar em certos escritores que deixam de se interessar pelo seu tempo, pelo menos enquanto intervenientes, já só vivem para a posteridade. Perguntam-lhes por autores vivos que eles admirem e eles têm um gesto de enfado. Todos os que são dignos de louvor estão mortos e enterrados, não pertencem a esta época. Jovens promessas das letras? Não lêem, não acreditam, não têm tempo nem paciência. Quando não estão a escrever, relêem os mestres. De resto, já não crêem na literatura, os livros vão desaparecer. Talvez alguns grandes vultos sobrevivam. E, sim, admitem se instados, modestos, ficariam contentes se uma ou outra obra sua se incluísse no panteão.
Esta não é uma arrogância nova, repete-se a cada geração ao longo da história. Em certos espécimes envelhecidos, a falta de generosidade e o egotismo vencem o sentimento de pertença e a curiosidade. A urbe é a certa altura para estes pessimistas como as trezentas concubinas para o geronte Salomão de A Cidade e As Serras: um serralho «ridiculamente supérfluo». Mas, como diz Jacinto, não são exactamente as concubinas que se tornam imprestáveis.
Talvez a literatura acabe, mas será por falta de leitores, não de escritores. Se estes Schopenhauers (para nos mantermos na perspectiva do Jacinto queirosiano) não estivessem publicados, se não tivessem sido lidos, se mantivessem um mínimo de abertura e curiosidade em relação ao que se produz no seu tempo, talvez vissem o problema pelo lado certo. A época não tem falta de génio criativo — tem falta de público. Décadas antes, as pessoas eram postas no caminho das obras, literárias ou outras. Agora, com conivência geral, as obras são afastadas do caminho das pessoas, como obstáculos que impedem o avanço da carroça.
Estes jubilados podem já não ter ânimo para ir admirar ou agitar as artes — mas escusavam de ser tão prestimosos a promover o enterro delas. Escusavam de pôr o seu prestígio ao serviço da actividade funerária.

*Ver Público de sexta-feira.