sexta-feira, 7 de dezembro de 2012

Voz

Por vezes lamento ter-me cruzado com os dois volumezinhos mágicos de Uma Campanha Alegre. O país não precisava de mais um queirosiano.
Tenho mentido quando digo que não houve nenhum livro que mudou a minha vida. Aqueles mudaram. Não porque tenha decidido imitar o estilo do autor, mas porque me era impossível evitar fazê-lo. Desde novo imito (ou tento) o que quer que me tenha encantado na hora anterior. Se havia mundial de futebol, no fim das transmissões não queria mais do que jogar à bola; quando o hóquei tinha a importância de passar na RTP1 (o único canal português que apanhávamos lá em casa em certa altura), os meus velhos sapatos ganhavam rodas e tudo servia de stick. Havia hipismo nas Romanas? No dia seguinte estava a saltar briosamente obstáculos, às costas de mim mesmo. Festival da Canção? Subia ao palco, Vítor Espadinha esforçado. Super-Homem? Saltava do terraço. Coboiadas? Filmes de guerra? Ficção-científica? Aceitava qualquer papel, versatilidade era o meu nome. Quando dei com as Farpas era inevitável que elas contaminassem tudo o que escrevi a seguir. A questão é que as coisas que imitava antes não tinham o génio do Eça de Queirós e, consequentemente, o impacto duradouro de um trauma de infância.
A prosa queirosiana é uma armadilha (enreda-se sobre si mesma), uma maldição. Usa as palavras como quem usa o lápis do caricaturista e usa as palavras, no sentido em que se aproveita delas para os seus lúdicos e pouco sérios intentos. O escritor queirosiano tem aliás a seriedade de uma anedota num funeral. E a conveniência de um inimigo do defunto. Quando se senta a escrever, até pode ter boas intenções, vontade de elogiar isto ou aquilo, mas acaba sempre a distorcer, a exagerar, a procurar os vícios e os defeitos, a procurar o pior — e formas imaginativas de o afirmar. 
Malogradamente, o exercício é prazenteiro. Vicia. Voltamos sempre a ele como ao pó. É preciso esforço (ou neura) para escrever alguma coisa noutra perspectiva, noutro tom.
Quando passei a tentar a ficção, insisti em livrar-me da influência do mafarrico do monóculo. O meu Aranda (opus II), por exemplo, cometeu a proeza de se inspirar num livro de Martins Amis (esse queirosiano inglês) sem lhe imitar a prosa, o melhor do autor. O que demonstra como podemos ficar estúpidos quando queremos ser órfãos.
Talvez tenha entretanto encontrado a minha voz. (Ou mais do que uma — sabem como é, esquizofrenia, transtorno bipolar, essas coisas). Parece que os escritores são pessoas que passam o tempo à procura duma voz, como certos religiosos literais ou certos hóspedes de manicómio, e eu não me esquivo à presunção. O que de resto, com o narcisismo, me parece bastante típico de um queirosiano. 

***

P.S. Queriam post mais auto-evidente? Pretendia falar de coisas boas, espectáculos que vi, livros que li, músicas que ouvi, sítios que visitei — matérias de que o país precisa —, mas acabei previsivelmente na caricatura.

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