Tenho mentido quando digo que não houve nenhum livro que mudou a minha
vida. Aqueles mudaram. Não porque tenha decidido imitar o estilo do autor, mas
porque me era impossível evitar fazê-lo. Desde novo imito (ou tento) o que quer
que me tenha encantado na hora anterior. Se havia mundial de futebol, no fim das
transmissões não queria mais do que jogar à bola; quando o hóquei tinha a importância
de passar na RTP1 (o único canal português que apanhávamos lá em casa em certa
altura), os meus velhos sapatos ganhavam rodas e tudo servia de stick. Havia hipismo nas Romanas? No dia
seguinte estava a saltar briosamente obstáculos, às costas de mim mesmo.
Festival da Canção? Subia ao palco, Vítor Espadinha esforçado. Super-Homem?
Saltava do terraço. Coboiadas? Filmes de guerra? Ficção-científica? Aceitava
qualquer papel, versatilidade era o meu nome. Quando dei com as Farpas era inevitável que elas
contaminassem tudo o que escrevi a seguir. A questão é que as coisas que imitava
antes não tinham o génio do Eça de Queirós e, consequentemente, o impacto duradouro de um
trauma de infância.
A prosa queirosiana é uma armadilha (enreda-se sobre si mesma), uma maldição. Usa as palavras como
quem usa o lápis do caricaturista e usa
as palavras, no sentido em que se aproveita delas para os seus lúdicos e pouco
sérios intentos. O escritor queirosiano tem aliás a seriedade de uma anedota
num funeral. E a conveniência de um inimigo do defunto. Quando se senta a
escrever, até pode ter boas intenções, vontade de elogiar isto ou aquilo, mas
acaba sempre a distorcer, a exagerar, a procurar os vícios e os defeitos, a
procurar o pior — e formas imaginativas de o afirmar.
Malogradamente, o exercício é prazenteiro. Vicia. Voltamos sempre a ele
como ao pó. É preciso esforço (ou neura) para escrever alguma coisa noutra
perspectiva, noutro tom.
Quando passei a tentar a ficção, insisti em livrar-me da influência do mafarrico
do monóculo. O meu Aranda (opus II),
por exemplo, cometeu a proeza de se inspirar num livro de Martins Amis (esse
queirosiano inglês) sem lhe imitar a
prosa, o melhor do autor. O que demonstra como podemos ficar estúpidos quando
queremos ser órfãos.
Talvez tenha entretanto encontrado a minha voz. (Ou mais do que uma — sabem
como é, esquizofrenia, transtorno bipolar, essas coisas). Parece que os
escritores são pessoas que passam o tempo à procura duma voz, como certos
religiosos literais ou certos hóspedes de manicómio, e eu não me esquivo à
presunção. O que de resto, com o narcisismo, me parece bastante típico de um
queirosiano.
***
P.S. Queriam post mais auto-evidente? Pretendia falar de coisas boas, espectáculos que vi, livros que li,
músicas que ouvi, sítios que visitei — matérias de que o país precisa —, mas acabei previsivelmente na caricatura.
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