Se O Cavalo de Turim não fosse uma obra de arte por várias outras razões, sê-lo-ia suficientemente pelos quatro minutos e vinte e dois segundos do vídeo acima, a cena de abertura. Durante esse tempo, tudo o que nos é mostrado é a evolução no terreno de um cavalo que puxa uma carroça com um homem sentado nela.
É certo que se ouve a peça musical de Mihâly Vig, e esta poderia ser desfrutada de olhos fechados durante todos os quatro minutos. Mas quando a ouvimos olhando convictamente o ecrã fruímo-la melhor, temos uma experiência mais forte, somos conduzidos a um outro nível de sensações. Imagem e som funcionam como uma peça única, uma instalação. Se fosse curador de um centro de arte contemporânea, gostaria de obter licença para projectar numa sala, em loop, estes poderosos 4’22’’, e duas ou três vezes por dia eu seria um dos visitantes da sala, como uma personagem de Don Delillo ou um gestor onanista candidato às listas de desemprego deste Governo.
O cinema pode ser uma coisa para fruir contemplando, como quadros em museus ou orquestras em palcos. O Cavalo de Turim é uma obra dessas, que durante duas horas e meia nos pede que contemplemos. A maioria das pessoas ignora o apelo. Se não ignorasse, se adquirisse um bilhete, talvez irrompesse um tumulto na sala ao fim de vinte minutos, pateadas, assobios, indignações, exigências de reembolso. Béla Tarr não fez o filme para valer os seis euros que custa um bilhete de cinema num multiplex. O filme incomodaria as pipocas, os comentários jocosos, as trocas de sms. Seria aborrecido.
Para O Cavalo de Turim não há mais de umas poucas de dezenas de espectadores que se submetem ao ritual colectivo do silêncio e da contemplação. Exibi-lo não é uma actividade lucrativa, do ponto de vista monetário. Contudo, exibi-lo é um trabalho que alguém tem de fazer, se queremos comunidades decentes, que respeitam os interesses das suas minorias silenciosas e contemplativas. Da sua reserva de inteligência e bom gosto, talvez nos seja permitido dizê-lo.
A democracia não é uma questão de escolha, é a questão anterior da possibilidade e liberdade de escolha. Que o mercado não assegura. Talvez o Governo tivesse o dever de pensar nisto antes de fechar a RTP2 e preparar o terreno para outros males de lesa-intelecto. Se quisesse ser respeitado.
Sem comentários:
Enviar um comentário