quinta-feira, 6 de dezembro de 2012

Periférica


Uma amiga recente anda a ler a Periférica e diz que, «carago, é como estar apaixonada por um namorado morto!». Gosto desta abordagem, pela boa-disposição e pela franqueza médico-legista.
O post «Expectativas», surpreendentemente popular, trouxe evocações da revista que um dia fizemos, quando éramos jovens e tesos. É agradável recordar aqueles tempos, mas pouco útil sentirmo-nos órfãos deles. Por definição, os órfãos não recuperam a progénie.

Que sentimento então?

A Periférica deveria ser uma coisa para nos lembrarmos daqui a quarenta anos, em jantares de velhos combatentes ou no lar, em robe e babete, se o alzheimer o permitisse. Entretanto, deveríamos ser deixados em paz a escrever os nossos livros, a plantar as nossas árvores, a fazer os nossos filhos, a casarmo-nos e a divorciarmo-nos, a fingirmos que temos uma carreira útil. A Periférica deveria ser o projecto que nos orgulharíamos de ter oportunamente morto e que nos arrependeríamos tarde demais de não ter desenterrado, quando confrontados com o fracasso das nossas vidas individuais. A hipótese necrófila não deveria ser posta uma década apenas depois de o bicho ter visto a luz do dia, meia dúzia de anos após o óbito. Quer dizer, desenterrar-lhe o cadáver agora pode trazer surpresas desagradáveis, como haver ainda carne agarrada aos ossos, um corpo incorrupto que certos fanáticos quereriam de imediato pôr numa vitrina e adorar religiosamente, organizar peregrinações, criar uma seita.

De resto, uma Periférica é coisa que se faz aos vinte ou trinta, e da última vez que olhei havia gente dessa idade no país. Por favor, rapaziada, não nos façam passar pelo ridículo de vedetas dos eighties a voltar aos palcos. Não somos génios como o Morrisey. Somos o Cliff Richard, temos vinhas para plantar no Algarve e exemplares da primeira edição para assinar. Não estamos velhos, bem sei, mas temos pneus e colesterol. Uma dor aqui e outra ali. Prenúncios. Ou preguiça, pronto.

Não, não estamos de novo a ficar jovens — mas estamos de novo a ficar tesos, sem cheta, e isso é perigoso. Era agora que uma rapaziada qualquer nos pedia para usar o nome da rosa, a cedência do título, o direito à criatividade sob a égide periférica. Era agora que o país se surpreendia com outros pretensiosos zés quaisquer que se punham a fazer uma nova Periférica a partir duma moita na Beira Alta ou duma fraga em Melgaço. Agora. Antes que fiquemos mais pelintras e isso nos dê ideias estúpidas. Antes que nos despeçam e fiquemos sem nada mais útil para fazer. Antes que imaginemos que o nosso projecto para os anos cinzentos que aí vêm é tirar a capa e as calças de lycra do armário, é encenarmos a noite dos mortos-vivos, é fazermos o número 15 da Periférica — em vez de algo com sangue fresco, algo que inclua bombas e atentados, por exemplo.

Talvez haja um projecto para quarentões lisos e desempregados, mas não tem de ser o de zombies quebra-corações, não tem de ser uma ridícula reunion band. Ou tem?

4 comentários:

  1. :(
    Carago! Podia ter sido eu!
    ...
    E o resto, tirando a imagem pouco idílica ali pelo meio, é brutalmente bom.
    Sois bom, carago! Que noia, logo um esquerdista radical, bolas!
    Humpf...

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  2. :) obrigado.
    Esquerdista radical é alguém que tem vontade de pôr bombas? oh, diabo que o PSR tem maioria absoluta.

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  3. porque não?

    há gajos com oitenta anos que se acham jovens... e ainda pegam na ideia e fazem a nova Periférica. :)

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