terça-feira, 25 de dezembro de 2012

Do estado das artes

«(…) durante 30 anos de absoluta liberdade não apareceram “actividades culturais” de qualidade e consequência: em 2012 continua a não haver teatro, dança, ballet e tudo o resto.» Vasco Pulido Valente, in Público de 23/12/2012

No mesmo artigo em que reconhece que a cultura sempre viveu financeiramente mal neste país, Vasco Pulido Valente é capaz de cometer a frase tremendista acima e de afirmar que os produtores (culturais) «mais do que merecem» a ausência de público. Público que, aliás, tem um manifesto «desinteresse ou repugnância» pela «presença ou só o cheiro da Cultura».
Ora, é curioso que o anacoreta Valente, que reconhece a atávica alergia tuga à cultura e o subfinanciamento da dita, não hesite, como sempre faz, em culpar os produtores culturais pelo (suposto) fracasso das artes em Portugal.
Se não soubéssemos que a especialidade pulidiana são os raciocínios mancos servidos com prosa gourmet, talvez estranhássemos. Ou se não conhecêssemos a necessidade patológica que o arquétipo do velho rezingão tem de considerar Portugal um esgoto.

Curiosamente, nem estou de acordo com a premissa de que a cultura tem sido subfinanciada. Ou por outra: nos últimos dez anos houve orçamentos simpáticos para a cultura, o que acontece é que, como aliás VPV também refere, em Portugal a cultura é um chapéu de abas muito amplas. Tão amplas que tem sido possível acolher na sua sombra com uma regularidade e um cachet impressionantes o cançonetista Tony Carreira e uma miríade de epifenómenos.

Se não há público em Portugal para a cultura é porque aos portugueses têm sido servidas doses maciças de imbecilização nas TVs, nas rádios e nas escolas. Quase todo o espaço público português, incluindo a RTP e os artigos do triste Vasco, está ao serviço da estigmatização das artes. Para os media nacionais, teatro em Portugal são as comédias do sr. José Pedro Gomes. As comédias de J. P. Gomes (por vezes hilariantes) já eram quase tudo o que a maioria dos portugueses suportava e quase tudo a que a maioria dos portugueses assistia, mas a crise veio trazer uma súbita necessidade de humor ao país. Os nossos concidadãos, néscios e carentes como crianças órfãs, nunca foram encarados como seres inteligentes e interessados em alguma coisa diferente da anedota, mas agora a anedota é também caridosa e salvífica. Ainda ontem na Prova Oral da Antena 3, do sintomático Alvim, se reforçava esta crença, à sua maneira, natalícia.
Pelo seu lado, as escolas, na senda dos programas televisivos de talentos anónimos, estão mais apostadas em levar os meninos ao palco do que em sentá-los na plateia. As escolas, corpos docentes inteiros, como as TVs, seguem a ideia de que quem é capaz de gorjear uma cançoneta sem cair do palco é um portento das artes. E estão igualmente disponíveis para incensar o talento mimético e acéfalo. Na mesma medida em que, com honrosas excepções, estão indisponíveis para fazer qualquer pedagogia ou ilustração, aliás o seu mester.
(As universidades não contam para a educação nacional; são geralmente inúteis nesta equação das artes.)

E entretanto, ao contrário do que é apregoado no espaço mediático da paróquia, as artes lusas recomendam-se vivamente. (Posso sustentá-lo com uma lista, se alguém o desejar.) Concedo que seja necessário ir aos teatros e aos museus para saber disso — mas as televisões, as escolas e a opinião pública, incluindo a última página do Público ao fim-de-semana, não sabem como se sentar calma, anónima, regular e atentamente numa plateia. É este, e não outro, o drama das artes em Portugal.

1 comentário:

  1. há quem goste de estar sempre "fora do mundo" e pense que mundo cultural actual é o mesmo do Garrett ou do Eça, dai todas as comparações que adoram fazer.

    felizmente não é esse o nosso Portugal, mas temos mesmo de levantar o rabinho do sofá para o perceber...

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