Parecia-me uma correcta organização do mundo, o capitalismo a funcionar
da forma certa. Maior produtividade, maior vencimento. Boa remuneração para
trabalhos difíceis, mas necessários, que a generalidade dos homens de bom grado
recusaria.
Mas cedo descobri que aqueles casos eram excepções no tempo e no espaço.
O capitalismo, pelo menos na versão portuguesa, não premiava o esforço, não
tinha incentivos para as profissões duras. A pessoa tinha sorte ou azar, era
tudo. Ter uma profissão dura não era uma opção com um bom salário em vista, era
uma desgraça, algo em que se caía por falta de alternativas. As tabelas
salariais das profissões e das empresas não estavam feitas a pensar na
dificuldade do serviço. Na verdade, quanto mais sorte se tinha maior era o
vencimento. Quanto mais limpa e menos custosa fosse a função, mais bem paga ela
era. Supostamente porque a função mais limpa e mais confortável era também a
que tinha mais responsabilidade.
Só que responsabilidade não é um conceito lusitano. A palavra existe no
nosso dicionário, mas com outra semântica.
Para muita gente, conquistar uma posição mais alta na hierarquia de uma
empresa ou instituição é obter um privilégio, ascender a uma espécie de estado
de nobreza medieval. A sociedade portuguesa está cheia de viscondes e duques,
gente cujo vencimento superior ao dos seus subordinados não se destina a pagar
a responsabilidade, a liderança que devem assumir com dedicação. Um salário
alto é um dote, um tributo, algo que cai na conta ao fim do mês como a renda
devida ao sangue fidalgo. Um direito natural que não precisa de mais justificação
do que titulo outorgado ou herdado. Ser chefe de secção ou director de serviços
não significa que se tenha de chefiar ou dirigir coisa alguma. Significa apenas
que se tem uma comenda, que se conquistou o direito a receber mais do que o
comum dos mortais e a trabalhar menos do que eles.
Este tipo de viscondes tem aversão a ser incomodado com as questões do
serviço. É um ultraje que os subordinados lhes peçam uma orientação ou uma
decisão. Suas altezas não podem ser aborrecidas com matéria tão vil. Se
ascenderam ao estado ducal não foi para sujarem as mãos ou matarem a cabeça. «Eu
não posso ser incomodado com estas coisas», ouve-se-lhes com frequência, em tom
enojado ou escandalizado, sendo «estas coisas» o serviço por que são
responsáveis. O seu trabalho quotidiano, que lhes toma geralmente um décimo do
dia, segue uma vetusta tradição lusa: tratar do despacho. E o despacho,
como o próprio nome indica, consiste em despachar para os funcionários menores toda
a documentação e assunto que careça de resolução, sem mais nenhuma directriz do
que um seco «resolva» e a respectiva assinatura e carimbo. Caso o funcionário pretenda
manifestar dúvidas ou solicitar instruções deve preparar-se para lidar com a impaciência
ou a ira do superior — e para não obter nada do que necessite. Se tiver a
veleidade de insistir, talvez perceba de uma vez por todas o que significa
liderar ou dirigir, o que significa a responsabilidade:
«O amigo trate de resolver o assunto como bem entender e sem demoras», é a
resposta que obtém. «E fique sabendo que se isto der para o torto não vou ser eu
a cair». E o chefe tem razão, porque em Portugal aos chefes não se lhes exige
mais do que o pleno usufruto dos seus privilégios. Jamais ocorre em nenhuma
instância da hierarquia a peregrina ideia de pedir responsabilidades aos…
responsáveis. Mesmo as inspecções ou os tribunais, nas raras vezes em que são
chamados a pronunciar-se, desconhecem o conceito de responsabilização, a não ser que ele se possa aplicar a um qualquer
lacaio sem perigo para a nobreza.
Portugal não chegou aqui vindo do nada.
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