Ilusão minha. Hoje, na mesa ao lado, trataram de fazer ruir o mito. Falavam
de uma equipa universitária de râguebi, mas podiam estar a falar de uma
quadrilha de rufias. Os jogadores ali mencionados eram tipos que, se não
estivessem bêbados, estavam a andar à porrada. Geralmente acumulavam.
Se saíam em viagem, faziam questão de aterrorizar os empregados de estações de
serviço e partir algum mobiliário, como as mais aplicadas claques de futebol.
Não concebiam estar em público sem demonstrar de alguma forma violenta o seu
poder, como machos alfa de um grupo de símios. De alguns dos espécimes descritos
pareceu-me difícil assegurar se tinham sido recrutados numa universidade ou num
asilo de doidos furiosos. Não ouvia suficientemente bem a conversa para ter a
certeza.
De tudo isto os comensais, três machos e uma fêmea, riam, divertidos,
sem espanto, conhecedores e apreciadores da fauna. Ninguém naquela mesa deve
ter crescido na mesma ingenuidade que eu.
Havia, contudo, alguma inexactidão nos relatos, porque quando um deles
mencionava certos jogadores célebres havia quem dissesse que a esse a idade
tirara o ímpeto, enquanto outros diziam que, pelo contrário, estava mais combativo
do que nunca. E retorquiam que o façanhoso antes referido pela outra parte é
que estava já numa pré-reforma de chá e rotary
club.
Talvez porque tivesse havido algum exagero nas façanhas descritas e percebessem
que com os celerados do râguebi o sangue na mesa diminuiria (a não ser que eles
próprios o fizessem derramar insistindo nas divergências), os comensais
passaram logo que puderam para o estudante universitário comum, esse vândalo
sem prática desportiva obrigatória cuja selvageria era mais consensualmente
reconhecida e admirada.
Ouvi-lhes que, a propósito da prática frequente de atirar copos de
vinho tinto à alvura do tecto, houve um restaurante cansado de manchas rubras que passou a servir apenas
vinho branco em jantares universitários. E isso levantou na mesa a difícil questão
de saber se a culpa da excitação púbere é da permissividade dos estalajadeiros se
da zurrapa que dão a beber aos discentes. Outro assunto em debate era se os
proprietários de restaurantes teriam meios de, por si sós, impedir os grupos
universitários de sair sem pagar quando isso lhes apetecia ou se teriam sempre
de recorrer à polícia. Apresentavam exemplos, referiam casos de sucesso, de
jantares por cobrar.
Não era preciso olhar-lhes os rostos para perceber que os meus co-comensais
não tinham abandonado a universidade assim há tantos anos: havia naquela mesa
semi-domesticada certas saudades da selva.
Mas os feitos académicos já não me interessavam. Deixei de ligar à
conversa, matutando na possibilidade de a equipa de râguebi daquela mesa não
ser representativa do râguebi em geral — não desistimos facilmente das nossas
ilusões, da nossa candidez.
Voltei a reparar neles quando ouvi que de novo litigavam em matérias candentes.
Sexo em público? Todos tinham testemunhado, claro. No Brasil, dizia um. Naquela
ilha espanhola (como se chama?, Palma de Maiorca), gabava-se outro. Na Madeira,
subiu a parada a moça, dentro de água. Isso era vulgar, desvalorizou um
terceiro, admiração seria na areia. Está bem, insistiu ela, mas viam-se mesmo
os movimentos.
Isto, percebi depois, vinha a propósito da Gabriela e da importância de perceber se na telenovela original «elas»
andavam assim tão descascadas e, presumo, se se viam mesmo os movimentos. A mãe
de um assegurava que sim; a mãe de outro que não. A do terceiro dizia que era
possível, porque lá no Brasil as coisas sempre tinham sido assim mais…
Como na Casa do Segredos,
aliás. Tinham visto aquela parola? Não, a outra, a que se gabava de ser formada
e dar aulas e mais não sei o quê e num concurso tinha falhado ao apontar no
mapa Vila Real. Quer dizer, como pode alguém não saber onde fica Vila Real, admirou-se
o geógrafo que um dia tinha visto sexo na ilha de «Palma de» Maiorca.
Os parolos sempre acham que a suprema ignorância é alguém não saber
onde fica a nossa terra.
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