quinta-feira, 3 de janeiro de 2013

Diário de fim-de-ano (5)

Autocarros

Na verdade, não posso censurar a senhora do casaco de peles que protagoniza a entrada anterior deste diário. O meu próprio rabo está longe de apreciar a ideia de se fazer transportar em autocarro. Desde que há vinte anos, durante quinze meses, fui cliente demasiado assíduo das rodoviárias nacionais, ganhei uma profunda aversão a essa forma de viajar, embora lhe reconheça as virtudes ecológicas. Na altura era um assalariado do Exército, e os vinte e cinco contos que recebia não davam para passagens de avião (que também não estavam disponíveis, de qualquer modo).
Quando se é militar, dorme-se em qualquer lado e em qualquer posição, diz a lenda, mas eu era um militar pouco convicto e o meu sono era demasiado leve e cheio de pesadelos. As viagens à sexta e ao domingo eram para mim horas de tortura, incluindo a tortura do sono. Tanto que ficar de serviço ao fim-de-semana significava um alívio que estupidamente não reconhecia. O Exército obrigava-me a fazer muitas coisas, mas não a ir a casa nas folgas. E até me dava de comer se eu decidisse passar o sábado e o domingo no quartel. Mas eu achava que gastar metade do tempo em viagens horríveis e à espera de ligações ferroviárias e rodoviárias que demoravam eternidades me faria esquecer as agruras da vida militar. Não fazia. Fazia-me enjoar e estourar o pré em cerveja (e bifanas, nas raras vezes que sobrava dinheiro para comida).

De maneira que andei duas décadas a fugir de autocarros. (Não ganhei a mesma aversão ao comboio, talvez porque só os autocarros me davam aquele vago mas garantido enjoo, que permanecia horas depois da viagem.) Quando há três ou quatro anos uma viagem para o Vietname implicava ir na Rede de Expressos até Madrid, não fiquei triste por o motorista se ter esquecido de nós numa deserta paragem do Alentejo à meia-noite. Parecia-me até haver uma certa lógica naquilo. Eu não gostava de autocarros; eles retribuíam a animosidade deixando-me apeado. Tendo em consequência viajado de carro, com todas as despesas pagas, incluindo o parque de estacionamento durante quinze dias em Madrid-Barajas, senti-me a enganar a empresa transportadora. Não era só a estupefacção por uma empresa nacional assumir de pronto e voluntariamente um erro e decidir em tempo útil medidas práticas e compensatórias para o cliente apeado; era uma sensação de culpa, como se eu tivesse planeado aquilo tudo para conseguir fazer com que a viagem de carro fosse uma inevitabilidade paga pela Rede de Expressos.

De lá para cá, mérito da troika e do Governo, tenho recorrido ao autocarro mais vezes do que as que desejaria — terminando sempre com o mesmo velho enjoo. Animo-me contando as páginas que leio em cada viagem e que não leria se viajasse de carro. Ou pensando na investigação antropológica e literária que oito ou nove horas em autocarros permitem.
Permitem alguma, reconheço. (Mas não tão confortável quanto viajar o mesmo número de horas ou o dobro num autocarro no Vietname; ali as viaturas de longo curso possuem uma espécie de beliches que nos permitem dormir mais ou menos estendidos, se ultrapassarmos a crise claustrofóbica, e acordar com dores no pescoço ou nas pernas — em vez de embrulhados do estômago.)

Na penúltima viagem que fiz para atravessar a nossa bem-amada pátria, saiu-me um tipo que passou a primeira hora a agradecer aos estudantes universitários que connosco viajavam (e ele não conhecia pessoalmente) o sucesso da sua carreira. Devia-lhes a eles o crescente número de contratos e a recente notoriedade de que desfrutava. Vestia um fato comprado nos chineses, com uma gravata fina de cabedal, e, com os seus trinta anos e figura franzina, usava um bigodinho de actor porno. Era um cantor pimba — os estudantes sabem onde está o talento.
As restantes sete horas, o do fato passou-as a negociar sexo pelo telefone. Não me entendam mal: o engate estava consumado, percebeu-se logo na primeira chamada. O que acontecia era que a rede (dele ou dela) estava fraca e a ligação estava sempre a cair. Também tinha havido um arrufo qualquer e eles tinham de passar por todo o processo de acusações, amuos, chantagens, ameaças, declarações e beijinhos repenicados antes de tratarem do negócio pendente. Como a chamada caía sempre que as coisas pareciam avançar e eles tinham tempo (o cantor não ia a lado nenhum antes de chegar a Bragança e ela também parecia estar com tempo e disposição implicante), de cada vez que o telefone dele repetia um hit foleiro (talvez o último sucesso do dono como toque personalizado) as coisas voltavam ao início. Foi preciso chegarmos a Penacova para que o tipo começasse finalmente a soletrar o que pretendia dela. E o que pretendia era S. E. X. O. Assim mesmo, soletrado. Ésse, é, xis, ó. Cinco vezes soletrado, tantas quanto as que a chamada caiu entre Penacova e Castro D’Aire. Ou nos estava a tomar a todos que o ouvíamos ali no autocarro por parvos incapazes de decifrar o seu acrónimo ou aquilo era já uma forma de sexo tântrico à distância. Deve ter tido o seu orgasmo por alturas de Bigorne porque adormeceu como um anjo e até Vila Real não se olhe ouviu mais um pio. Finalmente. Juro que alguns de nós tinham estado a pensar fazer uma colecta para o mandar às putas numa das paragens.

Hoje a viagem começou com um rapaz de óculos e sete anos, um saco carregado de Angry Birds, um telemóvel com jogos dos mesmos bichos e som de flippers e uma inesgotável tendência para falar. Mal me sento num autocarro, enfio as trombas no jornal ou no livro para evitar pendurar numa orelha o letreiro roubado no hotel: do not disturb. Se não trago um desses comigo, escrevo numa folha A4: «Este passageiro dispensa conversas, obrigado». Por vezes basta-me mostrar a cara que Deus me deu. Com o puto nenhum dos três métodos deu resultado. Devia estar a necessitar de mais dioptrias. A minha sorte foi que a avó, do outro lado da coxia, estava profundamente empenhada no seu papel educacional e respondia por mim às indagações do puto, antes que eu tivesse de lhe mostrar uma outra espécie de angry bird. A nossa conversa resumiu-se assim ao que se segue:

Puto: — Sabes o que eu gostava de ser quando for grande?
Eu: — …
Puto: — Aposto que não sabes.
Eu: — …
Puto: — Vou-te dizer: lambe-botas.
Avó: — Não sejas tolo.
Eu: — Excelente escolha.

O futuro lambe-botas não se coibiu, todavia, de me contar que o Natal não tinha corrido lá assim muito bem no que se referia a presentes. Tinham roubado a carteira ao pai em Espanha, com todos os cartões de crédito, e ele não conseguiu substituí-los em tempo útil. Estive para lhe perguntar, com um sadismo vingativo, se não tinha já idade para deixar de acreditar no Pai Natal e em histórias daquelas, mas depois ocorreu-me que o pai do puto tinha sido sensato ao resistir a contar a verdade sobre o Gaspar. Aos sete anos devemos ser poupados à merda do Homem-do-Saco, mesmo que sejamos uns chatos do caraças.

O resto daquela etapa da viagem foi pacífico, o puto finalmente desistiu de mim e azucrinou apenas a avó.

Puto: — Avó, viste o Star Wars?
Avó: — Não, não vi.
Puto: — Não viste A Guerra nas Estrelas?!...
Avó: — Ah, esse vi.
Puto: — E quem conheces da Guerra na Estrelas?
Avó: — O Mr. Spock.
Puto: — O Mr. Spock?!...
Avó: — Sim, um senhor com as orelhas muito grandes.
Puto: — Estás xexé?!...

***
Avó: — Quando tiveres uma namorada contas-me?
Puto: — Eu tenho uma namorada.
Avó: — Ai sim? E como se chama?
Puto: — Frankenzilla.
Avó: — Estás xexé?!...

Antes de Viseu, noite cerrada, o autocarro para subitamente junto a um café no meio de nenhures. O motorista informa, autoritário: «Dois minutos», e o passageiro começa de imediato a abrir a braguilha na sua correria para o quarto de banho. Regressa a apertar o cinto e com ar de duplo alívio. Tinha conseguido. No prazo.  
A meu lado, o passageiro que bebera uma das três cervejas que trazia no saco, com um gesto contrariado desistiu das restantes. Decerto pensou que se lhe tocasse a ele pedir uma paragem não prevista dois minutos seriam insuficientes.

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