Em muitos aspectos, o Estado português não merece que o defendamos. Os
próprios portugueses tornaram a sua defesa uma tarefa um pouco suja. Até certo
ponto, pode-se dizer que, como país, temos o que merecemos.
Durante décadas, a sociedade portuguesa foi cúmplice do
nepotismo, da cunha, dos favores, da troca de empregos por um punhado de votos,
da corrupção, do caciquismo, do despesismo, do oportunismo, do chico-espertismo
e de uma boa dúzia mais de ismos perniciosos. Os portugueses pugnaram sempre
por eleger os políticos que os tratavam como crianças ou imbecis. Era esta a
sua opção firme. O tipo que mais banha-da-cobra vendesse era o que levava os
votos. Para o eleitorado, as boas ou más medidas políticas não eram as que tinham
o bom governo do país como objectivo ou falhavam nisso — eram as que iam ou não
ao encontro das mais altas expectativas do português, geralmente em domínios
espúrios. E as medidas não dependiam do PIB ou duma qualquer estratégia governativa.
Dependiam da boa ou má vontade do líder; do seu bom ou mau carácter; do amor ou
do ódio que este tinha aos portugueses. Se um líder propunha apertos de cinto ou
moderação de despesas públicas, não era alguém sensato a tentar ter mão na
economia — era um malvado que só nos queria prejudicar. Se, pelo contrário,
propunha baixar os impostos e investimentos a rodos, não era um irresponsável
ou um lunático — era um grande político.
Não
admira que em plena crise haja quem pense que o Governo é mau simplesmente porque
corta salários e aumenta impostos, em vez de mandar imprimir mais dinheiro. O
Governo é de facto mau, mas não nesta acepção infantil, de vilão, de figura
cruel e caprichosa de desenhos animados. Muitos portugueses, se perguntados
sobre o que acham do Governo, dirão «é mau!» com a clarividência, o tom, a
expressão, a lagrimita e o polegar na boca de uma ressentida criança de seis
anos.
Paradoxalmente,
os políticos foram sempre tidos numa péssima conta pelos portugueses. Ladrões,
oportunistas, mentirosos, gente sem escrúpulos nem interesse pelo bem comum. Estavam
lá, no poder, apenas para se servirem. Depois, eleição após eleição, estes
ladrões angariavam a maioria dos votos. É que, nas pausas de serem crianças, no
meio da sua esquizofrenia, os portugueses sabiam que os políticos não eram
diferentes deles próprios. Eram seus iguais. Tinham saído do seu seio. Que
cidadão não aproveitava ou traficava uma cunha, não fazia ou pedia o seu
favorzito? Que cidadão não enganava o fisco, se pudesse? Que cidadão não encarava
o Estado como uma entidade opressora ou um tesouro a saquear, se tivesse a
oportunidade? A má opinião sobre a classe política era apenas o exercício quotidiano
da hipocrisia, a receita a horas certas para recalcar os próprios defeitos.
O
Estado desbaratou os fundos europeus. E quantas empresas e cidadãos o não
fizeram? Quantas empresas e cidadãos não usaram o crédito e os incentivos financeiros
como meio para obter brindes de vaidade em vez de melhorias na produção? Quantos
portugueses não frequentaram sonambulamente cursos de formação apenas pelo
dinheirito ao fim do mês enquanto aquilo durava? Quando o Estado desbaratou
fundos não o fez, aliás, para agradar ao portuguesinho na sua necessidade de
ornamento, de festarola? (Ou de lucro fácil para alguns…) Quantos portugueses pensaram
que os estádios do Euro eram uma insanidade? Quantos portugueses não julgaram
os presidentes de câmara pela obra feita, mesmo que essa obra fosse
frequentemente inútil e desmedida?
Muitos
sabiam, muitos diziam que ainda um dia haveríamos de pagar. Esse dia é hoje.
Mas
se tudo o que disse atrás é verdade, nada autoriza o Governo a solicitar ou
aceitar relatórios conducentes à explosão do país. Uma coisa é mudar o estado
das coisas, outra é acabar com o Estado. É que, paradoxalmente, o Estado
português melhorou e muito nos últimos vinte anos. Em muitas áreas tornou-se
mais eficaz, mais presente no território, mais próximo do cidadão.
Descentralizou-se e melhorou, na saúde, na educação, na cultura. Diminuiu a
pobreza. Protegeu. Só quem não tem memória ignorará como se vivia melhor em
2010 do que em 1980.
Claro
que se pode dizer que o dinheiro da Europa foi tanto que deu para desbaratar e
fazer boas coisas. Deu para as grandes negociatas e para as boas obras. Ou, se
quiserem, que o endividamento foi tanto que permitiu dar crédito e lucros
milionários aos barões dos negócios e umas belas férias ao cidadão anónimo.
O
Estado precisaria então de ser reformado? Certamente. Era preciso eliminar a
corrupção, o despesismo, o tráfico de favores, o saque, a cultura de indolência
e de irresponsabilidade. É isto que o Governo está a tentar fazer? Nem em
sonhos. Nada de verdadeiramente estrutural está a ser mudado na sociedade
portuguesa para este fim. Desde logo porque o Governo é demasiado representativo
do que há de podre na sociedade portuguesa. A inefável dupla Dupont e Dupond, ou
Passos & Relvas, não mexerá, não saberia ou quereria mexer uma palha nesse
domínio. Tirando umas generalidades — como eliminar freguesias e acabar a eito com
empresas municipais ou fundações, que se convencionou serem todas antros de
compadrio ou esbanjamento e por isso dão para fingir que se combate esses males
— os homens não querem ir ao cerne das questões. Preferem derrubar a floresta a
ter de identificar as árvores apodrecidas e lidar com elas.
Tudo
o que se está a tentar fazer em Portugal é avançar com bulldozers, terraplanar
sem observar o território. Um governo que põe capacete e se senta aos comandos
duma retroescavadora pode parecer aos olhos duma qualquer troika ou duns falcões
estrangeiros um Governo laborioso, cheio de energia e vontade de começar de
novo. Mas na verdade o Governo é uma espécie de homem do fraque, ocupado apenas
em cobranças coercivas à classe média. Decidiu-se que há uma factura a pagar
já, e o Governo encarregar-se-á disso. Sem argumentar. Sem pedir tempo. Sem
ligar às baixas. Fingindo que a Grécia é longe.
É
que o Governo também tem uma costelita ideológica. Identifica-se com um certo
liberalismo avançado e a alta finança. A sua fidelidade não vai para o povo
português — vai para a doutrina e para os gurus internacionais. O Governo não
se preocupa se ninguém consegue ver a economia a criar empregos nos próximos
anos. Não o preocupa o desemprego — preocupa-o o custo do trabalho. O seu ponto
de vista é, por defeito de formação, o da empresa, da grande empresa — exclui o
do trabalhador. As empresas têm de dar lucros, eis o ponto. O problema do desemprego
resolve-se com fé numa página de Excel (em papel Bíblia claro) ou diminuído o período
de vigência do fundo de desemprego. É que o problema do desemprego só existe
enquanto isso significar encargos para o Estado. Se a economia criar empregos,
diminui-se a despesa do Estado. Se as pessoas forem perdendo o direito ao fundo
de desemprego, diminui a despesa do Estado. Diminuir a despesa do Estado é tudo
o que importa. E isso é cumprido de duas maneiras: em resultando a estratégia (mais
conhecida por wishfull thinking) do
ministro das finanças ou pela via da demolição das funções do Estado.
Lá
fora são solidários com este objectivo. Muito solidários, mesmo. O FMI, que já
percebeu como falham as suas previsões e as suas estratégias, tratou agora de forçar
o plano B. Que na verdade sempre foi o plano A. O seu relatório parece, e de
certa forma é, uma confissão de culpa e falhanço da troika e do Governo, mas é
apresentado como uma incriminação dos portugueses. Porque o que querem fazer em
Portugal necessita que os portugueses se sintam demasiado envergonhados e
culpados para se defenderem ou procurarem alternativas.
Como
diz Luís M. Jorge neste post, o
relatório do FMI é uma «posição negocial». Tão dura que qualquer concessão nos parecerá
uma amostra de paraíso. Preparam-se para nos bombardear e ameaçam com a bomba
atómica. De seguida enviam “apenas” uns misseis convencionais que poucas
paredes deixam de pé e nós agradeceremos como se tivéssemos sido aspergidos com
rosas.
Se
a troika e a Europa estivessem interessadas em resolver o problema de Portugal também para os portugueses, davam-nos
tempo e condições para isso. Exigiam que o Governo fizesse de facto reformas,
não demolições. Mostravam um pouco mais de solidariedade. De resto, a Europa,
que não foi inocente na desmontagem da nossa economia, já foi solidária com povos
com culpas maiores do que as portuguesas.
Chapeau!
ResponderEliminarSaudações,
antonieta
Olá Rui Ângelo Araújo,
ResponderEliminarBoa análise.
Um país periférico, pequeno, gente cordata, de onde saem bons futebolistas e bons treinadores mas, aos olhos de uma Europa burocrática e de uma organização apátrida como o FMI, um país atrasado, gente facilmente manipulável, uma coisa para aqui para um canto - um país que, estando a ser atacado com a ferocidade a que se assiste, ainda acredita que este governo tem condições para continuar e que, a votar, ainda muitos votariam nos mesmos, no psd/cds. E à frente deste país um grupo de gente ignorante, inculta, incompetente, deslumbrados.
Ou seja, este é o terreno ideal para os especuladores que, de dente afiado, passam os radares em busca de bons locais para comprar barato, para ter pessoal barato, cordato, pacífico, onde o poder político tem a determinação de uma banana.
E, portanto, vá de baixar ordenados, cortar direitos, despedir, esfolar, etc. Quanto pior, melhor para os especuladores financeiros.
É este o filme.
Como saímos disto em democracia e com dignidade é a questão.