É verdade que no meu mundo o lugar de guitarrista já estava (bem) ocupado,
e não haveria nada que eu pudesse fazer para conquistar o posto, excepto talvez
abater o titular. Mas não se ganharia nada com esse esforço e esse crime,
excepto mais um guitarra-ritmo medíocre. E eu perderia um irmão. (É certo que
tinha mais dois.)
No princípio faltei às aulas e tangi uma viola barata até fazer sangue
nos dedos. Mudei para o baixo mal houve possibilidade de usar um, e continuei a
massacrar as polpas, desta vez com bolhas e calos. (Não sei se já deram conta,
mas tocar um baixo é como acariciar uma grosa, assim romântico e esfoliante.) Insisti
tanto no exercício que julgo perceber o papel submisso numa relação sadomasoquista.
No final conseguia realizar algumas piruetas com os dedos — e falhar uma boa
meia dúzia de notas. É que o ouvido nunca acompanhou o desenvolvimento digital.
E o estilo: fui talvez o primeiro baixista a usar luvas sem dedos e gel no
cabelo nos bailes das castanhas de Carrazedo de Montenegro, mas fui também
decerto o que menos vezes se ateve ao tom e à escala.
No meu tempo, um baixista aceitava tocar nos bailes pelo dinheiro e
pela “experiência”. Tocar em cima da galera de um tractor era um bom tirocínio,
defendíamos. A primeira vez que o fiz, substituindo um músico que tinha sido
mobilizado pelo exército, o conjunto ia já na quinta rapsódia quando eu
finalmente descobri a sequência de acordes da primeira música. Creio que o
líder da charanga tirou o baixo do PA no final do primeiro compasso e tudo o
que eu ouvia, eu e mais ninguém, com atenção e proximidade de Narciso à beira
lago, era o som do meu amplificador. Podia ter ficado toda a noite a tentar
decifrar o resto do repertório e a sentir na orelha a vibração do altifalante que
ninguém lá em baixo se daria conta.
Mas alguma consciência das minhas limitações (e da avançada embriaguez)
eu tinha, já que foi com alívio que recebi (eu e a banda) o aparecimento-surpresa
do antigo baixista, em folga da tropa. Anda hoje sonho com a aflição de não
acertar uma nota e a alegria de ver um tipo de bigodes subir ao palco e pedir
autorização para tocar uma música ou duas. Aquilo começa por ser um pesadelo,
pela aflição, e termina como um pesadelo, pelos bigodes. O alívio na verdade só
acontece quando acordo e me lembro que não voltei ao palco.
De tanto praticar, atingi uma competência relativa no baixo, mais devedora
da pura mecânica dos tendões do que da obediência a qualquer escala. Isso e o
talento real do mano puseram-me um dia de fato e colete verdes no palco do Rock
Rendez-Vous, quando já não havia Rock Rendez-Vous e a RTP2 decidiu inventar um miserável
sucedâneo. Mas isso é história para outra altura. Chega de humilhação para uma
noite. Já consegui não fazer o que tinha
para fazer hoje.
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