Varre o interior com um olhar que não implora nem acusa e senta-se numa
das duas mesas livres à entrada, debaixo do plasma que transmite o jogo da
noite. De mãos nos bolsos do casaco, fixa o tampo de fórmica e recolhe-se como
um monge que meditasse e aguardasse digna e pacientemente a distribuição do
caldo. Por acção da temperatura agradável da sala o seu corpo amolece, inclina-se,
a cabeça vai descendo de encontro à mesa. Não como se cabeceasse à lareira: é
um movimento lento mas contínuo, sem recuos ou estremeções. Os taxistas e
outros habitués do café vão fazendo
no intervalo das jogadas apostas sobre se chegará a bater ou não com o nariz na
mesa. Não lhes ocorrem outras ideias sobre a personagem que saiu do nevoeiro.
Apenas a chalaça indiscreta, sobranceira, pueril. O empregado que passa dá uma
palmada na mesa para o acordar e avisar que a mesa faz falta.
De súbito, um cliente avança de uma posição discreta no balcão e com
modos suaves pergunta-lhe se quer uma sopa. Ele não reage com indignação
ressentida, fermentada a álcool, nem fica humildemente agradecido. Estremunha
um pouco e depois informa em voz baixa, neutra, que preferia um prato de
batatas fritas. Os taxistas mantêm um olho indeciso no plasma e outro nas
barbas do Rasputine. O cliente anui com naturalidade, batatas fritas é uma
opção nutricional como outra qualquer.
Daquele momento em diante, o homem saído do nevoeiro é também um
cliente, mesmo que a expensas de outrem, e o empregado age em consonância. Abandona
os modos paternalistas e censórios, traz-lhe uma toalha de papel, talheres e
guardanapo. Parece até afectuoso, talvez contagiado pelo gesto do cliente anónimo,
que entretanto retomou sem considerandos o seu lugar na linha que do balcão assiste
ao Estoril-Benfica.
Mais alguém se sentiu contagiado ou achou que faltava naquela mesa
acompanhamento líquido e uma taça de vinho tinto é servida, sem gracejos nem moralismos.
O das barbas come as batatas e bebe o vinho. Não procura colocar o copo a jeito
de um encore, ainda que decerto lhe
não caísse mal. No fim, limpa-se minuciosamente com o guardanapo e, sem
palavras nem emoções aparentes, mendigo de passagem ou incógnito Rei Artur
regressado da Cruzadas, volta com dorida fleuma para o nevoeiro de onde saiu.
Estranhamente, cá dentro ninguém fica a discutir a lata do indigente ou
a identidade do nobre, e não sei se deva atribuir isso ao nevoeiro se a mais um
golo do Benfica.
Olá Rui Ângelo Araújo,
ResponderEliminarÉ por isto que eu gosto de vir aqui ler o que escreve!
Obrigada.
Saudações Periféricas.
Antonieta
Obrigado por vir aqui ler e dar sentido a isto.
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