Mas como homem do seu
tempo (ou como homem tout court) tinha também uma vida dupla. A
pública, respeitável e austera, e a privada, onde se concedia, pelo menos ao
nível do pensamento e do desejo, os direitos próprios dos machos, como ele os
entendia. O tipo de pessoa que idealizava e representava em sociedade via
ser-lhe aliviado um pouco o regime austero na intimidade. Ninguém diria, por
exemplo, que adquiria pornografia, e no entanto adquiriu-a até à entrada da
velhice. Ele, o indivíduo severo que tinha sempre uma repreensão pronta para as
poucas-vergonhas na TV e para a brejeirice em certas cançonetas.
Hoje, vendo as actuações
musicais de um programa da TVI, confessou para quem o ouvia que com frequência
se deixa agora dançar sozinho em frente à televisão. Os que o conhecem não o
imaginam a fazer tal, com os seus cem quilos, os seus movimentos lentos,
paquidérmicos, os seus oitenta e muitos anos, os seus óculos e pose de Marcelo
Caetano. «E correm-me lágrimas ao ouvir estas cantigas», reforça para os
incrédulos.
As cantigas da
televisão, com a sua monomania sexual e as suas bailarinas de coxa roliça ao
léu, são do género que ele vilipendiaria na meia-idade. Têm, no entanto, a base
rítmica, os acordes, a simplicidade de espírito e por vezes o fraseado na
concertina de outras melodias populares na sua juventude. É decerto isto que
ele ouve lá na sua televisão de velho solitário — não os sucedâneos de lupanar
raiano que a TVI apresenta.
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