(Talvez seja melhor
dizer, preparando já um alibi para mais do que certas mudanças de opinião ou
para assegurar a indulgência do juiz, primeiros parágrafos na forma tentada. Na verdade, é a descrição mais justa, já que falhei este trabalhinho encomendado a mim próprio.)
«Lembram-se do esqueleto que há uns seis meses alvoroçou a cidade? Era
eu. Sei que é difícil de acreditar, até porque o esqueleto usava barba. Mas era
eu. Hoje estou muito melhor, comi qualquer coisa entretanto e barbeei-me,
voltei a usar roupa. Mas as fotos que viram nos jornais eram minhas. As tíbias,
os fémures, os rádios, as falanges, todo o chocalhante conjunto era meu. Até o
chapéu era meu. Sim, reconheço, podia ser de um cigano. Porém, era meu.
Tomaram-me por um junkie, mas isso era uma acusação sem cabimento. Naquela
altura eu já tinha deixado de me injectar, as agulhas partiam-se-me nos ossos.
Bebia, de facto, mas não muito. Um pouco menos do que o Rasputine. Eu sei que ele era ligeiramente maior do que eu e isso faz diferença. Ok, umas três vezes maior do que eu. Sou um tipo baixo.
Um baixote. Um minorca. E magro (agora já nem tanto). E louro. Se fosse moreno,
teria sido mais difícil ser baixo. Era demasiado azar para se continuar vivo.
Um gajo louro tem outro lustro. E depois há os olhos azuis. As mulheres quando
olhavam para mim não viam um gajo baixo, estavam demasiado ocupadas a
derreterem-se com o lourinho de olhos azuis. Quando finalmente se dispunham a
medir-me a altura, faziam-no aos palmos e era raro passarem dos tomates. De
resto, eu tinha ali uma surpresa para elas, uma a que se agarravam de mãos e
dentes. Um tipo pode ser baixo e ter um pau comprido. As leis da física não o
impedem. Fizeram-se testes. Eu fiz testes, na adolescência. No
início, quando percebi que tinha uma coisa telescópica entre as pernas que em
certas alturas não parava de crescer, assustei-me. Achei que aquilo me podia
desequilibrar. Nunca a deixava crescer sem me encostar com uma mão a uma
parede. Não é incomum que os putos o façam, embora nem todos limpem a parede
depois. Mas fui ganhando confiança, como os funâmbulos se adaptam à vara que os
equilibra no arame. Se pensam em termos gráficos, talvez estejam com dúvidas
sobre a funcionalidade do sistema, mas a representação não esclarece tudo. Há
os glúteos, que se desenvolvem com o crescimento. Imaginem isto: as mamalhudas
não passam o tempo a cair de queixos, pois não? Bem, algumas passam, é verdade.
O que quero dizer é que o nosso sistema muscular se adapta à carga com que tem
de lidar. Não era um daqueles tipos com bíceps hiperdesenvolvidos porque não
precisava assim muito dos braços. Isto pode deixar confuso um alferes, quando
se vai para a tropa e se fracassa nas flexões na barra, mas não as mulheres.
Pelo menos há vinte anos não. Entretanto tive de me adaptar, frequentar ginásios,
arranjar-lhes uns bíceps que pudessem apalpar. O centro gravitacional de um
corpo não muda com as épocas e os gostos, mas por vezes tem de se arranjar uns
pontos de apoio para as mãos.»
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