«Ele punha-se a dizer que não
havia nada mais lindo do que um cão e esperava que eu me enternecesse como ele
se enternecia. Já sabes que eu não suporto animais, dizia-lhe, não lhes quero
mal, mas não os suporto. Ele ignorava os meus argumentos e continuava a olhar
para onde quer que lhe apetecesse olhar, compondo o seu ar de miúdo sabidolas e
independente. Tenho uma solução para ti, respondia, como se eu fosse um
problema a precisar de uma solução. Depois, ia-se a ver, e, ainda que ele não pensasse
assim, a solução não era para mim mas para o meu problema, porque pesando bem
as coisas eu não era um problema, eu tinha um problema. Pomos-lhe uma caixa em
cima com um buraco para ele espreitar e já não podes dizer que é um bicho,
insistia, passas a ter uma encomenda como mascote. E ria-se. Lá em baixo na rua
deslizava uma caixa de papelão levada pelo vento e era aquilo o que lhe dava
matéria para discursar. A noite marcava o início do Inverno; o frio, a chuva e
o vento tinham finalmente unido esforços para fazer descer a estação à nossa
latitude, depois de um Outono seco e com temperaturas altas. A ideia vinha de
um filme de que por acaso lhe falei, o meu irmão não tinha imaginação para
coisas destas, mas a mim ocorria-me o mesmo ao espreitar o alcatrão molhado,
onde a embalagem de um aparelho de televisão fazia o percurso aleatório das últimas
folhas das tílias, como se andasse por ali, debaixo da caixa, o agorafóbico cão
de The Price of Milk.
Estava disposta a manter-me
ofendida, eram as minhas memórias o que ele usava, servia-se dos meus relatos
para se fazer interessante e para construir as suas frases insidiosas, as suas
metaforazinhas, e com elas causar-me dor. Para tua informação, dizia-lhe, no
filme o cão supera a fobia, mas eu não tenciono abandonar esta casa nem por um
minuto, e com os braços trémulos de raiva fazia rodar a cadeira para longe da
vidraça da sala. Ele fingia-se surpreendido, mas não evitava o sarcasmo,
via-se-lhe nos olhos a forma industriosa como tudo, cada palavra, era convertido
em farpas, ainda que se forçasse a ser subtil. Não me passava pela cabeça
sugerir-te isso, querida, dizia, apenas achei que te seria útil uma companhia. E
a mim apetecia-me dizer uma companhia mais assídua, mas continha por segundos a
vontade de argumentar, estava já demasiado humilhada para me submeter a estes
torneios. Agradeço que te preocupes com a minha solidão, respondia, abertamente
irónica, sem afinal resistir ao diálogo, sobretudo aprecio a tua intenção de
delegares num cão ou num caixote as obrigações do amor fraternal. Depois
arrependia-me de frases destas; eu precisava dele, isso era evidente, mas a
mágoa que sentia pedia-me que ocultasse o mais possível as minhas fraquezas.
Ele obtinha a sua pequena vitória e sentia-se ainda mais investido na função de
tomar decisões por mim, de saber o que era melhor para mim, mesmo que o melhor para
mim fossem coisas insuportáveis como ter uma mascote ou uma mulher-a-dias ou
uma enfermeira particular. Abominava a intromissão de quem ou o que quer que
fosse na minha casa, mas o meu irmão estava disposto a passar por cima de mim
para assegurar o meu bem-estar e não se dava conta do paradoxo. Talvez porque
não era propriamente em mim que ele pensava, mas na noção de correcção que lhe
tinha sido inculcada cedo com um conjunto enorme de princípios de pacotilha.
Ter uma irmã, a sua única irmã, o último membro da família, prostrada numa
cadeira de rodas era algo que se cravava nas suas entranhas com a força das
bestas que ele conhecera em África e que lá caçara com decisão e jactância.
A doença não era para ele um mal
que se abatera sobre mim, mas a desculpa que eu procurara toda a vida. Amparava-me
por dever familiar e social, mas odiava-me por aceitar a reclusão e uma vida
que ele considerava inútil. Às vezes queria que eu ficasse a par de milagres
que certas publicações pouco escrupulosas divulgavam, insinuando à sua maneira
pretensamente divertida que pela oração é que nos salvamos. Algures na sua
mente tradicional residia a ideia de que se eu desejasse suficientemente viver
e fosse suficientemente fervorosa nas crenças que ele achava respeitáveis
haveria uma altura em que teria acumulado tantas ave-marias e tantos pais-nossos
que não me restaria outra hipótese senão levantar-me e caminhar, tal a força da
fé e a misericórdia de Deus. Eu insultava a sua personalidade beata e dizia-lhe
que a única coisa de que necessitava era que ele se pusesse a milhas, me
deixasse tratar da minha vida na minha casa. Como tu quiseres, dizia ele sem na
realidade dar importância ao que eu pensava nem se sentir livre de obrigações
para comigo, mas na tua condição dispensar a companhia de um cachorro ou de um
gato é uma atitude soberba. Eu ficava a pensar na expressão, mas estava cansada
de ser racional, já não lhe dizia que ter as pernas paralisadas não era uma
sentença, não me obrigava a nada que não quisesse. Dizia vai-te foder, e isto,
que não resolvia nada, aliviava-me um pouco, e por isso repetia algumas vezes,
vai-te foder, vai-te foder.
Talvez devesse estar agradecida
por ter alguém que queria olhar por mim, mas não conseguia sentir as coisas
deste modo; para o meu irmão eu era uma parte da herança da família, mais um
dos itens do inventário a que era preciso dar atenção, só isso. Não se
perdoaria se me acontecesse algo, como não se perdoava quando se quebrava uma
das jarras chinesas ou quando uma das propriedades ardia, mas não lhe importava
muito a minha opinião sobre o assunto. Pelo meu lado, eu considerava que o que
havia para me acontecer tinha acontecido e não tinha a certeza de o lamentar,
lamentava-o sem dúvida muito menos do que ele. Quando um dia damos por nós numa
cadeira de rodas, o primeiro pensamento é para todas as coisas que vamos deixar
de poder fazer, como se antes daquele momento passássemos os dias a querer
fazer coisas. Suponho que não escapamos com facilidade à autocomiseração e
quando o conseguimos ainda temos de lutar com a comiseração alheia. Se me
tivessem amputado as pernas, o meu irmão não teria dúvidas, até para ele seria
evidente o carácter inelutável da minha nova condição. Mas as pernas estavam
ali, incólumes, e percebo que as pessoas se revoltem contra a inutilidade de
membros assim. Eu fi-lo, quando percebi que sem as poder usar ia depender de
terceiros para a minha derradeira viagem, aquela que me levaria a casa, ao
sítio de onde eu finalmente tinha uma razão para não sair. Passei muito tempo
no hospital à espera de um enfermeiro verdadeiramente altruísta que me metesse
numa ambulância e me deixasse sem perguntas no elevador do prédio. Tinha a
certeza de que faria facilmente a parte final do caminho, no patamar do meu
piso. Mas foi o meu irmão quem empurrou a cadeira, cheio de fórmulas de encorajamento
e estatísticas sobre a longevidade das pessoas em condições adversas, relatos
de triunfo e felicidade. O meu irmão não era o único a confundir esperança de
vida com esperança de viver. Eu desistira desta aspiração há muito tempo e não
nego que por isso tinha mais facilidade em encarar a paralisia como uma
benesse. Infelizmente a minha desculpa era também aquilo que me fazia depender
dele. Claro que, pelo meu lado, a dependência seria suportável se ele me
tratasse verdadeiramente como uma das cabeças de gado da família, me afagasse
regularmente a cabeça e mais não fizesse do que designar alguém para fazer
subir até mim as coisas de que eu necessitava e para tratar da limpeza da casa
uma vez por semana. Se ele fosse capaz deste tipo de honestidade, a minha
docilidade estaria à altura das conveniências. Mas havia o factor humano a
contaminar as nossas relações. Ele não conseguia ser um cínico acabado e eu não
me livrara de todas as carências, havia ainda espaço em mim para o afecto,
vivia um estoicismo inacabado. Quero dizer que ainda amava o meu irmão, quase
tanto quanto o odiava.
Sempre que entro aqui, dizia ele,
abandonando por momentos a estratégia do humor, sinto uma nostalgia forte,
recordo como era regressar a casa nas férias grandes, depois de termos ido para
o colégio; os objectos, a disposição dos móveis, quando eu entrava tudo me
parecia familiar e novo simultaneamente. E lembro-me que o que me apetecia era
passar os dedos pelas coisas, espreitar todos os compartimentos, mesmo antes de
abraçar o pai e a mãe. Herdaste dela o bom gosto, o jeito para decorar um lar.
Olho à volta e poderia jurar que houve aqui dedo dela, Deus a tenha. Não era
verdade, a casa da família era muito mais antiga do que a mãe, e quando ela lá chegou
não teve autorização do pai para mexer em nada, para redecorar o que quer que
fosse. A memória do meu irmão estava a fazer um trabalho delicado de reconstrução,
a sua actual sensibilidade servia o branqueamento do machismo paterno, enraizado
no lado masculino da família por séculos de prática empedernida. Nada no meu
apartamento lhe permitia lembrar o património familiar, era apenas eu que me
parecia fisicamente com a mãe e ele que se sentia perdido sem os pais, os avós,
os tios, a pequena multidão que nos acompanhou até à idade adulta. A linhagem
tinha chegado ao seu fim connosco e ele não aceitava com facilidade que o
último membro do clã, eu, fosse tão voluntariamente anónimo e desinteressado do
futuro. Uma casa tem de ter armários e mesas e cadeiras, não?, respondia-lhe com
vontade de o desprezar por cada palavra que dizia. Essa é a única semelhança,
em casa havia mobília e aqui há mobília, não sei o que mais podes ver de
parecido. Nem nós nos parecemos com aquelas duas crianças estúpidas, tu agora com
a mesma barriga e a mesma obstinação cega do pai, eu sem a paciência que
naquela altura tinha para as vossas ilusões patriarcais. Não, voltava ele, por
mais que o negues aqui respira-se o mesmo ar que se respirava lá em casa. Isso
é porque de cada vez que expiro me livro de mais um pouco desse tempo de merda,
retorquia eu. Podes vir aqui absorver o meu dióxido de carbono todas as vezes
que quiseres, com a condição que deixes lá fora os teus projectos para mim. Ele
dilatava as narinas ao ouvir-me, inspirava a plenos pulmões como se de facto a
atmosfera estivesse impregnada dos aromas da velha casa. Algures no seu cérebro
era estabelecida uma ligação e a realidade não o conseguia desmentir. Na
verdade, a ligação existia, mas não estava na casa, estava em mim, não só na
minha respiração, mas no som da minha voz, nos traços do meu rosto, nos gestos
que a cadeira me deixava fazer, na forma como em certos momentos eu o olhava.
Não estranhei quando uma noite me
pediu para o deixar subir com uma das suas mulheres e dormir no quarto vago. Aquilo
não fora uma necessidade de última hora derivada de uma avaria no carro, era
uma ideia fantasiosa que ele não se impediu de pôr em prática. O seu objectivo
com as mulheres era a procriação, assegurar a descendência. Teve várias antes
de perceber que o problema estava nele, que o seu sémen era inútil. Naquele dia
tinha sido emitido o derradeiro boletim clínico e ele tinha-o lido, mas na sua
mente tradicionalista e beata havia ainda uma última tentativa a fazer, procurar
no domínio do místico aquilo que a ciência lhe negava. Tocou à campainha e conduziu
a mulher ao quarto, mas ficou-se a vaguear pela casa antes de lhe ir fazer
companhia. Parecia absorto, preocupado com alguma coisa, mas na verdade
dedicava-se a uma espécie de ritual, embebia-se da atmosfera, convocava os
fantasmas que a minha respiração largava no apartamento. O seu olhar cruzou-se
com o meu por várias vezes e em todas ficava latente um pedido, uma súplica que
ele não tinha coragem de materializar. Cansada daqueles enigmas e da sua
deambulação, fiz rodar a cadeira para o meu quarto e deitei-me. Ouvi-o
encostar-se à minha porta antes de avançar finalmente para o quarto que eu lhe
emprestara e nesse momento percebi o que pretendia de mim. Mas não estava
disposta a alimentar a sua credulidade, a servir de amuleto para aquilo que se
propunha. Não seria eu quem abençoaria aquela cópula, mesmo que por absurdo
estivesse convencida como ele de que se velasse à cabeceira da cama, em nome de
todos os que nos tinham antecedido neste mundo, a mulher debaixo do seu corpo
lograria conceber naquela noite.
Havia ainda, talvez, outras
razões para aquele seu desejo, mas preferi ficar a ver o dia aparecer na janela
e não pensar no assunto.»
Vila Real, Novembro de 2008
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