«Delfina e a mãe estavam a ficar desiludidas com o padrasto, mas ao
mesmo tempo hesitavam em censurá-lo abertamente. Não por receio de
consequências, a relação deles não envolvia violências, nem o padrasto era um
patriarca despótico. Não era, aliás, um patriarca, não havia disso naquela
família. Delfina crescera a ver os dois elementos do casal como iguais; com
características particulares e incumbências raramente permutáveis, mas iguais
em importância e influência. Iguais nos defeitos, até. Por exemplo: fumavam os
dois incansavelmente charutos.
Mas agora sentia-se mais próxima da mãe do que do padrasto. Não era o
sangue, era talvez o facto de apenas elas serem estrangeiras e estarem
desamparadas nesse sentimento.
Reduzir o problema da família a uma questão de mudança geográfica era
uma tentativa de indulgência em relação ao padrasto, a forma de evitarem
censurá-lo directamente. Sentiam-se estrangeiras, assustadas, sim, mas havia o
comportamento dilatório dele, os seus medos e a forma como se estava a entregar
a eles, afastando-se da mulher e da enteada.
Precisavam dele. Não gostariam de o alienar ainda mais deixando-o
perceber como se sentiam temerosas e desamparadas. Deixando-o perceber que elas
sabiam o que se passava na cabeça dele, a forma como os velhos preconceitos se
apoderavam da sua vontade — como memórias que voltavam — e se sobrepunham aos
afectos.
Era desta soma de medos e ocultações, e da consciência que todos tinham
deles, que se compunha o mal-estar. Nos silêncios e nos olhares todos percebiam
o que ia na cabeça de cada um. Ele agarrava-se à doença como quem se agarra a
um ramo na margem para não ir com a corrente — ignorando que podia vencer a
corrente simplesmente nadando. Elas zombavam e minimizavam o seu sofrimento,
como se tudo o que desejassem fosse que ele se queixasse menos. Ele era o velho
hipocondríaco, elas as que não tinham paciência nem piedade. Era desta forma
artificial que se aborreciam e magoavam, para não terem conversas francas,
previsivelmente mais fracturantes; para o padrasto não ter de dizer (e
envergonhar-se disso) e elas não terem de ouvir (e sofrer a punhalada) que a
razão por que ele adiava a partida para o Seixo era o facto de elas serem
pretas.»
in Hotel do Norte
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