[Uma personagem feminina no Dia Internacional da Mulher]
«Todas as roupas de Delfina eram
de tecidos finos que se moldavam ao corpo: uma saia comprida e justa, uma blusa
curta sem mangas e um lenço na cabeça que lhe caía pelos ombros. Nenhuma das
peças possuía qualquer relevo, nenhum ornamento ou bolso ou laço, nenhum volume
se destacava que não pertencesse ao corpo da mulher. Um retratista, daqueles
que costumavam frequentar o Parque no Verão, teria podido desenhá-la nua sem o
embaraço de ela se despir.
Ia para o miradouro que havia ali
perto — um promontório de construção romântica, com uma rampa e degraus em
cubos de granito e gradeamento em betão a imitar troncos de árvores — donde se
avistava a parte inferior do Parque e a aldeia para lá dele, com a serra por
trás. Era um horizonte pequenino, mas ela supunha que num país pequeno não
havia horizontes mais vastos. De qualquer modo, gostava sempre de ir ali um
bocado qualquer do dia encher de vistas os olhos cansados do quotidiano
claustrofóbico no Hotel do Norte.
Ainda não se aventuravam muito
longe do local de acolhimento, inibição que ela imaginava semelhante à dos
exploradores num safari, cautelosos no período após se montarem as tendas numa
clareira. Não havia animais selvagens nas redondezas, isso Delfina sabia, mas
nem todos os medos ou constrangimentos tinham origem em feras.
O local, como de resto todo o
Parque, era de vegetação densa. As árvores rodeavam o miradouro e faziam uma só
copa que o cobria; heras vigorosas cresciam e enredavam-se nos gradeamentos; os
canteiros em volta estavam atapetados de plantas que ela desconhecia, mas que
faziam um manto compacto e fofo, delimitado por murinhos baixos. No espaço de
um mês, ou menos, tudo estaria mais despido, mas isso ela ainda ignorava. O sol
matinal, que os ramos não obstruíam, atingia-a na face e descia pelos ombros,
convidando-a a espreguiçar-se.
Era neste acto que ela se
retraía, olhando em volta, de novo ciente da sua condição de estrangeira em
terra estranha. Sentia-se rodeada de atilhos, espiada, alvo de olhares que se
ocultavam como hienas à espera. Com um arrepio, cruzando os braços sobre o
peito, regressava em passo rápido ao Hotel.
Delfina não tinha um quarto só
seu. Partilhava com a mãe e o padrasto um compartimento e o mal-estar que
cindia a família. O Hotel do Norte era para eles apenas um apeadeiro antes do
destino final, pelo menos a acreditar no padrasto, que há vinte e seis anos
trocara o Seixo — um lugar não muito longe dali, a norte — por África. Com o
passar das semanas, as duas mulheres da família julgavam perceber que a coragem
dele recuava. Tinha carinho por elas, disso não restavam dúvidas, mas faltava o
passo seguinte, mostrá-las aos irmãos e cunhados que não saíram da aldeia e
dizer-lhes, com normalidade, que aquela era mulher dele e aqueloutra a filha
que tinha o gosto de considerar como sua.
Ela e a mãe mantinham as malas
feitas à espera da ordem de partida. Acreditavam, queriam acreditar, que não
havia nada de mal com elas, que neste país as coisas poderiam ser iguais a
África, com a vantagem de não haver nenhuma guerra à vista. O padrasto afagava
a face de uma e de outra e deixava-se cair na cama, queixando-se de dores
incertas.»
in Hotel do Norte
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