Depois de por três vezes tergiversar
(aqui, aqui e aqui) sobre A Piada
Infinita, de David Foster Wallace, esperar-se-ia que agora dissesse alguma
coisa sobre o livro. Bem, eu esperaria.
Lido no Verão e em férias, os
problemas de pulsos e as ameaças à cana do nariz são bastante minimizados. Logo,
estamos disponíveis para voltarmos aos prazeres infinitos (lá está) da
adolescência. A Piada Infinita (API) tem
um pouco de Júlio Verne e um pouco de Tarantino. O espírito do primeiro não
está tanto na obra em si, mas na mesma sensação algo transgressora de termos,
paradoxalmente, legais, autorizadas e
estimuladas tardes intermináveis de ócio ao nosso dispor. Um livro como este
ressuma o seu próprio respeito, tanto pelo volume como pela fama: quem se
dedica a uma obra assim tem de ser admirado e deixado em paz no seu labor solitário
e na sua dedicação metafísica. E a gente ri puberemente cá por dentro como se nos
estivessem a dizer que Jules Verne é bom para o nosso desenvolvimento e sempre
é melhor do que andar a jogar à bola com a canalhada vadia1.
Na verdade, embora tratados
com reverência2 por transportarmos um volume destes, e este volume em particular, cá por dentro
estamos a rebentar de prazer pueril, porque API é um livro para nerds, a sua inteligência, o seu carácter
cerebral, intelectual, a sua complexidade enciclopédica estão orientados para o
mesmo tipo de emoções que sente um adulto que recusa amadurecer e ainda
alimenta a esperança de ser raptado por alienígenas. Ouçam, não lemos este
tratado sobre a América e sobre a sociedade contemporânea com severidade filosófica
ou académica, mas a rebentar de gozo e com a ironia traquinas de diabretes num panteão
luciferino. Se um livro costuma fornecer a suave luz coada com que observamos o
mundo vil dos humanos, um livro desta espessura (agora falo metaforicamente) é
o filtro por excelência.
Acresce que lemos partes de
API como a mesma incredulidade divertida e sentindo o mesmo desafio infantil com que abordámos As 20.000 Léguas Submarinas: o tio
Júlio não ia parar nunca de nomear e descrever espécies oceânicas? Peixes? Quantas mais páginas ia ele
continuar naquilo e quantas resistiríamos nós sem passar à frente? Para
compreender a analogia, troque-se aqui a fauna atlântica por um catálogo de indústria
farmacêutica legal e ilegal mas mantenha-se a mesma aderência assassina e
apaixonada do leitor a uma obra literária.
E depois Tarantino, outro indivíduo
adulto apenas no BI. A Piada Infinita
é um compêndio de malformações (de corpo e carácter) resultantes do abuso de
substâncias legais e ilegais e do abuso que é tentar viver nos dias que correm3.
Tal como Tarantino, DFW diverte-se a fazer desfilar personagens de um circo de
horrores, diverte-se a compor uma montra de freaks,
e diverte-se a arranjar deixas e cenas e histórias para eles com o mesmo
entusiasmo que o Quentin põe nos seus filmes marados. Talvez a grande diferença
seja que Tarantino se descontrola e fica fascinado4 a ver o sangue a
correr e Wallace talvez nos forneça a composição química desse sangue5.
NOTAS:
1 Bem, hoje a maioria dos pais não pensa
assim, eles mesmos malformados e desejosos de ter uma caixa registadora CR7 em
casa.
2 Não somos olhados com reverência, isto é
uma liberdade literária; poética, mesmo. Somos é olhados com um certo nojo, com
a condescendência que a aldeia dedica ao tolo (quando se permite dedicar-lhe
tal coisa), com a jocosidade que a comunidade atira a um casal gay que passa de mão dada pela rua.
3 O mundo não mudou assim tanto de 1996 para
hoje.
4 Deixando a câmara ligada.
5 Não necessariamente na secção reservada às notasi.
i A importância das notas em API não é reflectida
por esta observação tautológica e pretensamente engraçadinha; o mesmo não se pode dizer sobre o quão é ridícula a nossa resistência ao ímpeto copycat depois
de ler a obra, aqui total e vergonhosamente exposta.
Não li o livro, mas cheirou-me :) Aproveitando a analogia, talvez vá literalmente cheirá-lo, numa livraria. A partir daí - por minha conta e risco, se bem que não me parece mesmo nada - logo se vê. Grande texto.
ResponderEliminarObrigado. O API vale mesmo a pena.
ResponderEliminargostei de te ler, mas nem por isso me apetece ler o livro.
ResponderEliminartalvez esteja a ficar velho e não queira ficar com os pulsos lixados, de segurar tanta página. :)
Compreendo bem. :)
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