A intensa futurologia à volta dos livros parece augurar, por si mesma, a perenidade da literatura. Mas é um engano. «No futuro, o conteúdo dos livros valerá muito pouco; as pessoas vão pagar é pelo contexto e pela comunidade à volta desse conteúdo.» Quem o afirma é um tal de Bob Stein (director duma curiosa instituição designada Institute for the Future of the Book), citado por Isabel Coutinho, no Ípsilon.
Será certamente erro de percepção meu, ou a manifestação de um ressentimento irreprimível, mas sempre que leio experts ou jornalistas divagarem sobre esta matéria não consigo deixar de os imaginar como grotescos adolescentes em corpos maduros e tolinhos por gadjets. Leio as suas palavras não como análises ponderadas mas como um exemplo de wishfull thinking. Para mim, o que eles dizem não é o que investigação indica que vai acontecer, mas o que eles desejam que aconteça e tudo farão para que aconteça. Com sucesso, não duvido. Os textos desta gente esquecem tantas vezes o “conteúdo” dos livros que, concluímos, para eles o futuro, este futuro, não é apenas inevitável — é agora.
As editoras, dizem, têm de aprender com os “jogos electrónicos” a “integrar diferentes formas de media” e “como lidar com comunidades de leitores”, já que no futuro “serão as discussões à volta dos livros que passarão a ter valor”. O valor, note-se, é aqui também valor comercial; a maior preocupação desta gente são os atalhos para chegar às multidões (e aos milhões) e não a forma de trazer leitores ao livro.
Somos tentados a visualizar uma comunidade de leitores a discutir um produto cujo conteúdo deixou de ser importante. Falarão de quê? Do suporte, claro, dos tablets e dos kindles, da forma como o autor conseguiu integrar fotos e vídeos e quinquilharia afim, como conseguiu assegurar a interactividade com os leitores, talvez aparecendo-lhes em casa à hora em que escreve, na forma de hologramas em cuecas, ou permitindo-lhes em tempo real intervir na feitura da obra, moldando-a a seu bel-prazer — afinal, é da contemporaneidade a revelação de que todos somos artistas. Tudo isto, esta comunidade de leitores em plena discussão à volta de uma coisa sem conteúdo, é muito sofisticado e espantoso, mas consegue-se descrever numa imagem simples (maravilhas que a linguagem ainda permite): moscas à volta de merda.
O Institute for the Future of the Book não parece ser uma instituição que se interesse pelo futuro do livro. Não parece preocupar-se em preservar e estimular a leitura, a razão do livro existir. A leitura exige silêncio, compenetração, tempo, isolamento, pelo menos mental — não a berraria electrónica dos jogos. Depois da leitura, vivam as comunidades e as fotos e os vídeos e o diabo a quatro. Não antes. Não durante. Sobretudo, não em vez de.
Está de acordo com o zeitgeist — ou, mais prosaicamente, com a estupidez reinante — esta mania de valorizar o acessório em detrimento do essencial. Mas talvez uma coisa como o Institute for the Future of the Book devesse revelar alguma preocupação com a qualidade dos livros e dos leitores — em vez de parecer tão ocupada a determinar o futuro do livro de acordo com a idiossincrasia (ou idiotia) dos seus dirigentes.
Que diabo!, divirtam-se com o que quiserem, inventem o que quiserem — mas não desvalorizem a experiência da leitura e os seus proveitos para o individuo.
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