quarta-feira, 19 de fevereiro de 2014

Vizinhas novas no prédio

Perante uma berraria prolongada de três moças universitárias em frente ao prédio (na verdade, uma só magricela, bebida e histérica, tenta à força de decibéis obsessiva e compulsivamente pôr «de quatro» uma caloira mais cheiinha e musculada, inamovível e paciente como um santo de altar), perante aquela berraria, alguma vizinhança assoma à varanda. No bairro, o alvoroço estudantil é rotina que entorpece: só é hábito chamar a polícia quando a coisa redunda em pancadaria a que não se vê fim breve. Talvez por haver gente nova no prédio, de uma das varandas ouvem-se uns «shiu!» e uns «então?!». O trio praxista, pouco habituado a que a vizinhança dê sinais de vida, olha em redor, estupefacto. Para minha surpresa, enfia a viola na bolsa coquete e retira, ordeiramente, como adolescentes a caminho da catequese (um dos bares das imediações).

Estou eu a fruir o momento quando as moças da varanda (também são moças, certamente novas no bairro) resolvem cantar vitória e lançam lá para baixo: «Andor! Tá andar, caralho!»

Ora, desfez-se o feitiço. As teenagers temporariamente bem-comportadas apontam como podem os queixos à varanda, reconhecem como iguais as oponentes e soltam as peixeiras que há dentro delas (o sotaque é do Porto, mas duvido que algum dia tenham vendido peixe no Bolhão, pelo que retiro a ofensa àquelas profissionais). «Como?!», retorquem apontando a pélvis como forcados amadores. «Vamos a calar!» ordenam as de cima, por alguma disfunção cognitiva ou erupção de jactância tendo ignorado que caladas tinham ficado as outras ao primeiro «shiu». «Estás-me a mandar calar?» «Estou, pois!» «Anda cá em baixo então, caralho!»

Pronto, suspiro, eis como se desbarata uma vitória. Agora a berraria passa a ter dois focos e não tarda há paralelepípedos arremessados às vidraças e sempre será precisa a polícia.

Mas a noite reserva mais surpresas. As de cima retiram-se da varanda e, ao contrário do que se suspeitaria, aparecem passado pouco tempo no passeio. A coisa pode redundar em maior alvoroço do que o que havia, mas há que louvar às moças da varanda a coerência. E a coragem: a caloira musculosa pôs-se entretanto do lado das dótoras, talvez em defesa do direito a ser humilhada.

Da minha própria varanda — comummente tomada neste blogue por bancada de circo ou balaustrada de zoológico, com certa pretensão literária —, solto outro suspiro. Novamente desajustado: as cinco moças ficam a trocar argumentos, mas, ou as de cima têm um forte carisma, ou a magricela danificou as cordas vocais na meia hora anterior: a altercação parece quase cordata. Podemos facilmente imaginá-las daqui a pouco a trocar números de telefone ou endereços de e-mail.

Quando me retiro para a sala, tenho a certeza de que as da varanda vão subir a buscar os casacos para se juntarem numa ida aos bares com as de baixo. E talvez depois venham as cinco ali para o passeio muito amistosamente debater aos berros quaisquer insignificantes diferenças de opinião, como sói fazer-se por aqui na hora em que os bares fecham. Um céptico não acredita em milagres que sempre durem.

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