Perante uma berraria prolongada de três moças universitárias em frente
ao prédio (na verdade, uma só magricela, bebida e histérica, tenta à força de
decibéis obsessiva e compulsivamente pôr «de quatro» uma caloira mais cheiinha e
musculada, inamovível e paciente como um santo de altar), perante aquela berraria, alguma
vizinhança assoma à varanda. No bairro, o alvoroço estudantil é rotina que entorpece:
só é hábito chamar a polícia quando a coisa redunda em pancadaria a que não se
vê fim breve. Talvez por haver gente nova no prédio, de uma das varandas
ouvem-se uns «shiu!» e uns «então?!». O trio praxista, pouco habituado a que a vizinhança
dê sinais de vida, olha em redor, estupefacto. Para minha surpresa, enfia a
viola na bolsa coquete e retira, ordeiramente, como adolescentes a caminho da
catequese (um dos bares das imediações).
Estou eu a fruir o momento quando as moças da varanda (também são
moças, certamente novas no bairro) resolvem cantar vitória e lançam lá para
baixo: «Andor! Tá andar, caralho!»
Ora, desfez-se o feitiço. As teenagers
temporariamente bem-comportadas apontam como podem os queixos à varanda, reconhecem
como iguais as oponentes e soltam as peixeiras que há dentro delas (o sotaque
é do Porto, mas duvido que algum dia tenham vendido peixe no Bolhão, pelo que
retiro a ofensa àquelas profissionais). «Como?!», retorquem apontando a pélvis como
forcados amadores. «Vamos a calar!» ordenam as de cima, por alguma disfunção cognitiva
ou erupção de jactância tendo ignorado que caladas tinham ficado as outras ao
primeiro «shiu». «Estás-me a mandar calar?» «Estou, pois!» «Anda cá em baixo
então, caralho!»
Pronto, suspiro, eis como se desbarata uma vitória. Agora a berraria
passa a ter dois focos e não tarda há paralelepípedos arremessados às vidraças
e sempre será precisa a polícia.
Mas a noite reserva mais surpresas. As de cima retiram-se da varanda e,
ao contrário do que se suspeitaria, aparecem passado pouco tempo no passeio. A
coisa pode redundar em maior alvoroço do que o que havia, mas há que louvar às
moças da varanda a coerência. E a coragem: a caloira musculosa pôs-se entretanto do lado das dótoras, talvez em defesa do direito a ser humilhada.
Da minha própria varanda — comummente tomada neste blogue por bancada
de circo ou balaustrada de zoológico, com certa pretensão literária —, solto outro
suspiro. Novamente desajustado: as cinco moças ficam a trocar argumentos, mas,
ou as de cima têm um forte carisma, ou a magricela danificou as cordas vocais
na meia hora anterior: a altercação parece quase cordata. Podemos facilmente
imaginá-las daqui a pouco a trocar números de telefone ou endereços de e-mail.
Quando me retiro para a sala, tenho a certeza de que as da varanda vão
subir a buscar os casacos para se juntarem numa ida aos bares com as de baixo. E talvez
depois venham as cinco ali para o passeio muito amistosamente debater aos berros
quaisquer insignificantes diferenças de opinião, como sói fazer-se por aqui na
hora em que os bares fecham. Um céptico não acredita em milagres que sempre
durem.
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