Depois da minha boa acção com a freira de ontem, tocaram-me à porta
dois simpáticos élderes (por estes dias as pessoas são todas simpáticas para
mim, coração de queijo amanteigado). Para quem não saiba, elder não é nome, é cargo, função; os rapazes da gabardina e da
gravata com ar anglo-saxónico, mesmo quando escuros de pele, são presbíteros de
um dos ramos da Igreja de Jesus Cristo dos Santos dos Últimos Dias, a IJCSUD
para os amigos. Tocarem-nos à porta para falar de Cristo é tão legítimo (ou
mais) quanto os bispos católicos terem freiras que lhes fazem as compras.
Adiante.
Eu queria ignorar os sinais, mas hoje tocaram de novo à campainha e
eram os Reis Magos. Ou alguém em seu nome. No caso, uma anciã com ar de pedinte
e voz de grafonola enferrujada. Não percebi a letra, mas a toada era vagamente
típica das janeiras. Também podia ser uma canção de embalar — a senhora
encostava-se de olhos fechados à parede, reparei enquanto espeitava pelo
olho-de-peixe. E só não dormia porque a pandeireta que abanava nas mãos não
deixava dormir ninguém, nem a própria. Cínicos dirão que se pode ser indigente
mas não tem de se ser estúpido. A senhora terá percebido nas tradições cristãs
uma forma de variar a sua abordagem à clientela piedosa. Ou então era apenas
alguém com idade suficiente para ter saudades de ir por esses quintais adentro
e, não tendo companhia para o caminho, resolveu tirar a pandeireta do prego
(sem metáforas) e aclarar sozinha a garganta. Sem sucesso, nesta última parte.
Para mim, contudo, ela faz talvez parte de um teste ou é sintomática da
forma trôpega que o altíssimo tem de abordar as pessoas. E, se foi teste, eu
falhei. Aos élderes ainda retorqui simpaticamente que compreendia o ímpeto
missionário deles (de resto, premissa cristã que os católicos não cumprem), mas
me considerava servido no que tocava à palavra de Deus. Se estivessem a fazer
entrega de hambúrgueres, talvez pudesse ficar com um para mais tarde. A ela, à
janeireira, não abri a porta, considerando cobarde e abusivamente que a caridade
da vizinha da frente representava todo o condomínio.
Deve haver uma lógica nisto. Enviesada, claro, mas sabemos que Deus
escreve direito por linhas tortas. Ou vice-versa, já não sei. Freiras,
presbíteros, reis magos… Alguém lá em cima quer falar comigo e não tem o meu
número? Falem com a NSA, caramba. Estou no Skype, se for preciso olhar nos
olhos.
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