Não sendo, nem em sonhos, um viajante imparável, tenho ainda
assim no cadastro um número simpático de milhas aéreas e muitos quilómetros de alcatrão
peninsular.
E contudo são insuficientes. Não me arrependo da
eventualidade de ter vivido nos últimos anos acima das minhas possibilidades, mas
arrependo-me (um pouco retoricamente, concedo) de não ter tentado poupar para estourar
em mais viagens.
Até há um mês arrependia-me também de não ter levado um
Moleskine nas expedições que fiz. Achava que as notas me seriam úteis nos posts e livros que ambicionava escrever.
Estava errado. As viagens são úteis — as notas não.
Em primeiro lugar, o mesmo carácter pudendo que me impede de
sociabilizar com facilidade inibe-me de escrever sobre as minhas viagens. Pelo
menos de escrever textos especificamente sobre as viagens.
O único Moleskine que tive (e tenho) foi-me oferecido há mais
de três anos e tem três quartos das páginas intactas. Recentemente levei-o para
Paris, mas foi inútil. Em nenhum momento dos dias que entretanto passaram senti
qualquer vontade (ou senti o à-vontade)
de o abrir para escrever fosse que género de texto fosse.
Em todo o caso, não seria de muita utilidade: apontei escassas
observações e mesmo essas me parecem fúteis.
Na verdade, o que aproveito literariamente das viagens não
surge por invocação e não poderia ficaria registado no período em que acontece.
A identificação (e gradação) da importância das coisas é um exercício
posterior. É mais tarde, por vezes bastante mais tarde — e involuntariamente,
quase inconscientemente —, que as experiências das viagens surgem e se revelam
úteis.
É como a vida: não sabemos que parte dela pode mais tarde ser
romanceada, caso contrário vivê-la-íamos como uma ficção vigiada e seria
portanto depois inverosímil, inutilizável, falsa, rebuscada, artificial, sem
proveito. Não é durante a viagem que detecto o material literário (ou apenas com
interesse narrativo): ele atropela-me um dia, no jogging, na caixa do supermercado, no trânsito, no duche. E então,
sim, deveria correr para o Moleskine, para que à noite, iluminado pelo ecrã,
não perdesse nada da ideia.
Creio que as notas tomadas durante uma viagem me seriam úteis
se as pudesse tomar em modo inspirado, se pudesse viajar como um paciente Cézanne
em frente a uma paisagem. Infelizmente, as minhas excursões são demasiado
curtas (orçamento oblige) para que me
possa dar ao luxo de agir como um escritor em viagem, sorvendo demoradamente. A
única coisa que posso fazer —
e isso é mais útil do que notas — é manter olhos e ouvidos bem abertos o tempo
todo. Passar pelos sítios e pelas pessoas como um aspirador diligente, com
grande poder de sucção. Um Hoover topo
de gama ao serviço do detalhe e das sensações. E depois confiar na memória,
esse departamento de arquivo e síntese de fábulas do cérebro humano.
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