Há uns anos alguém achou que me podia confiar o número de telefone de
Paul Auster e eu liguei para esse número. Na altura eu tinha acessos, por vezes
bem-sucedidos, de megalomania, mas atendeu-me uma voz feminina e o castelo de
autoconfiança que eu tinha erigido desmoronou. «Mr. Paul Auster?», balbuciei cá
de baixo, das masmorras. E ela, da sua torre de menagem: «Who gave you this
number?» Ainda tentei explicar ao que vinha, procurando recuperar um pouco da
compostura e da assertividade (da lata, na verdade) que usava em ocasiões análogas.
Mas ela não se comoveu demasiado, retorquiu com uma cordialidade evasiva, e estava
particularmente obcecada com a pergunta «who gave you this number». Não delatei
a minha fonte — tive esse resto de dignidade —, mas o inglês que treinara
saiu dos carris e a auto-estima deitou-se neles à espera do próximo comboio. Desesperado,
pedi-lhe um endereço de e-mail ou um número
de fax (ainda se usavam) e a voz deu-me uma sequência de algarismos. Terminou
ali a conversa e a campanha de Brooklyn. Mandei o meu fax e nunca tive
resposta.
Na hora e nos anos que se seguiram fiquei convencido de que falara com
a esposa do escritor. A voz era demasiado madura para ser da filha, então adolescente,
e, talvez para salvar o que me restava de ego, decidi que não falara com
nenhuma secretária, agente ou relações públicas. Não conseguira nada de Auster
— mas falara com a mulher dele. Assim se constroem os mitos.
Mais tarde cheguei a um primeiro livro de Siri Hustvedt (Aquilo que eu amava) e o meu trauma
transformou-se. Já não era a questão de ter falhado a operação Paul Auster, era
a de ter levado o meu embaraço para um novo nível. O livro de Hustvedt era
fascinante, mas ela era casada com o autor da Trilogia de Nova Iorque e isso fazia com que ao longo da leitura
soasse regularmente nos meus ouvidos aquela admoestação antiga: «Who gave you
this number?» Eu tinha descoberto uma escritora interessante, mas simultaneamente
descobrira que os seus livros estavam assombrados. «Who gave you this number?»
não era uma pergunta com que eu não soubera lidar: era um mantra
fantasmagórico. Olhava para a fotografia na badana e o seu rosto norueguês mas
tão ariano intimidava-me, remetia-me para o gueto. Hesitei em comprar o meu
terceiro livro dela porque temi que o título fosse uma insinuação, um aviso
críptico para mim: Verão sem homens. Aquele
homens era comigo. Eu estava impedido
de entrar no Verão de Siri Hustvedt, como anos antes fora impedido por ela de
entrar na casa do marido.
Tudo teria sido mais simples se a minha vaidade tivesse desde o início aceitado
que a secretária ou a mulher-a-dias do escritor ficara simplesmente
espantada com o facto de um desconhecido pouco fluente em inglês do outro lado
do Atlântico estar de posse do número do patrão. Porém, considerando que talvez
os livros de Siri Hustvedt sejam mais interessantes do que os de Paul Auster,
vou ali alimentar mais um bocadinho o mito de que um dia falei com ela ao
telefone e já venho.
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