sábado, 14 de janeiro de 2012

Considerações de um músico de metro

Ainda que a biologia não permitisse a K. ter uma consciência estética desenvolvida ao tempo, os anos 60 e 70 do século XX são muito as suas décadas, musicalmente falando. Quer dizer, se tiver de declarar alguma coisa aos costumes, K. é um filho dos eighties, esquizofrénico como eles. Mas as maiores emoções, as mais lancinantes, reconhece, vêm-lhe de músicas anteriores. Se K. ouve algumas canções daquelas décadas, apetece-lhe frequentemente desfazer-se em lágrimas. Outras vezes desata aos pulos e a esbracejar como imagina que se esbracejava na altura. Há uma explicação. K. viveu por dentro os anos oitenta e, portanto, o que lhe acontece por vezes é sentir nostalgia — no máximo. Já os sessenta e setenta foram sempre, ainda que de forma indirecta, espiritualmente mais intensos, míticos, lendários, verdadeira religião de que lhe chegavam, como do além, rumores em fitas magnéticas e raro vinil. Uma religião de que testemunhou, com curiosos olhos infantis, as últimas manifestações, observando platonicamente, como sombras em cavernas, o difuso estertor alcoólico de festas num armazém da vizinhança. (Ainda se dançava Pink Floyd com charme e copo de tinto, cigarro na mão, mas era já uma despedida.)
Há a questão dos ídolos. K. não pode dizer que tivesse conhecido pessoalmente algum nos anos 80. Dos anos 80. Contudo, na sua adolescência ainda contactou com dois ou três dos que tinham alcançado grandeza na década anterior.
Objectivamente, não é bem assim. Os seus ídolos de vizinhança apenas tinham tocado a grandeza ao interpretarem, à guitarra e em cima de palcos apertados e pouco seguros, a musicografia de sessenta e setenta. No entanto, K. não sentiu neles a fraude que se sente quando se compra fancaria. Eles eram genuínos, the real thing. Podiam limitar-se a fazer covers dos êxitos da sua época, mas soavam como os originais, vestiam e não cortavam o cabelo como os originais, transpiravam como os originais, drogavam-se como os originais. Não se distinguiam dos originais excepto por estarem vivos ou fisicamente presentes.
Um tipo da geração de K. não procurava aprender com alguém musicalmente activo em 80 — competia com essas pessoas. A quem K. pedia conselhos e aulas de guitarra era aos ídolos de setenta. Aprender as canções que eles tratavam por tu, como filhos legítimos, era ser-se iniciado na linguagem dos deuses, de que todas as canções de 80, mesmo as que K. pudesse escrever, emanavam, eram sucedâneos. K. imagina-se a sentir vaga camaradagem por algum condiscípulo da sua geração, mas o respeito, a admiração, o afecto reserva-o todo para aqueles que usavam calças à boca-de-sino antes de elas serem retro fashion.
K. acredita, em suma, que há na música, ainda que revolucionária e libertária, uma hierarquia (ou uma cronologia) a respeitar, um código de honra e de valores onde os mais velhos ocupam lugares determinantes, como em certas tribos.

Sentando no túnel do metro para mais um dia de trabalho, com um orgulho melancólico nas suas calças de ganga genuinamente gastas e rotas, K. reflecte sobre tudo isto na hora de escolher o repertório. Experimentou alguns temas seus contemporâneos, mas nenhum lhe soa bem à viola acústica. K. não dispõe de suporte electrónico mas não julga ser esse o principal óbice à verosimilhança, embora lhe pareça haver um problema de credibilidade quando se está de chapéu estendido a evocar um imaginário tão eminentemente burguês e entediado como o de oitenta. 

A vida de K. (7)

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