quarta-feira, 17 de agosto de 2011

Não se volta ao lugar onde se foi feliz

O José Ferreira Borges, amigo e compagnon das manobras periféricas, resolveu finalmente voltar à lide. Podem (e devem) lê-lo no Divina Comédia, blogue acrescentado nas ligações aqui ao lado.
O Vítor Lamas, poeta que se tornara abstinente, escreveu uns versos há coisa de dois meses.
Se por sua vez o Fernando Gouveia, outros dos mosqueteiros, se deixasse de merdas e voltasse a ter vida para isto, a sequência dos factos até podia causar um arrepiozinho na coluna. Mas não se volta ao lugar onde se foi feliz.

domingo, 14 de agosto de 2011

A Nero o que é de Nero, a Bush o que é de Bush


Da sua colina de historiador, e não sem um certo deleite, Vasco Pulido Valente vê confirmar-se o seu pessimismo sobre o império americano (e o império do Ocidente). O declínio (ou a inevitabilidade, se partilharmos o determinismo histórico) teria começado com o final da Guerra Fria, embora só agora se tenha começado a perceber.
Tenho uma tese diferente. O declínio da América e do Ocidente começou com a eleição de George W. Bush e o apogeu de uma certa visão do mundo. Ou, se quisermos, o declínio começou quando Bush, ou alguém por ele, viu na invasão do Iraque a possibilidade de tornar inevitáveis algumas ideias e práticas que ainda hoje excitam imensa gente e bloqueiam a política americana (e, de certa forma, a europeia).
Não roubemos ao homem o seu lugar na História. Pertence-lhe por direito. Estaríamos onde estamos se o Iraque não tivesse sido invadido? Esta é a pergunta.

O nome da besta

Se os presidentes americanos tivessem cognomes como os nossos reis, e se as fontes históricas fossem as colunas de imprensa, Bush passaria para os anais como George, O Idiota. Mas, por mais que apraza à esquerda, um tal epíteto retira-lhe imputabilidade, e isso desconsidera o seu papel na História.
Por outro lado, epítetos que se lhe podem colar ainda com mais propriedade têm o mesmo efeito de descrédito. George, O Testa-de- Ferro ou George, O Títere não só resultam ser injúrias insuficientes como lhe fornecem um dispensável álibi.
Porém definem melhor o seu papel.
As forças que estiveram por trás de Bush não foram para a reforma com ele. Como historiadores distantes, observam asséptica e ironicamente o declínio do império porque têm outro na calha para lhe suceder. Um que não precisa de pátrias nem de valores. Não de valores que não sejam traduzíveis em números. De contas bancárias.
O declínio pode ser inevitável, mas valia a pena deixá-lo apressar-se?

sexta-feira, 12 de agosto de 2011

O nadador*

Não há como viajar pelo país para constatar a admirável difusão da estupidez. Nenhuma empresa de comunicações se pode gabar de ter uma cobertura tão extensiva. Por vezes, chegamos a uma zona montanhosa, a um bosque mais cerrado ou a uma longa planície desertificada e ficamos sem sinal no telemóvel. Mas bastam poucos instantes para nos darmos conta que, ali onde as ondas electromagnéticas não chegam, chega a estultícia. Não há fauna ou flora que ocorra com tanta frequência e regularidade na geografia nacional; nem o prolixo, adaptável e para muitos asqueroso rato é tão comum quanto a idiotice.

Isto a propósito de música e piscinas. O viajante, sequioso e derretido, entra numa povoação e, antes de querer saber de factos históricos ou etnográficos, pergunta desesperado pela piscina do município. Não há curiosidade cultural que se imponha a um céu sem nuvens e temperaturas superiores a 30 graus. De qualquer modo, a forma como uma comunidade se banha, as cores e modelos dos seus calções e biquínis e o jeitinho que tem para se revirar ao sol são dados importantes para o conhecimento etnológico.

Não tanto, infelizmente, quanto a música que se põe a tocar numa piscina.

De norte a sul, as piscinas são o prolongamento diurno e com excesso de cloro de discotecas. Mas não discotecas que usem um som universal, abrangente, transversal a classes e gerações. Não discotecas sensatas no volume e apuradas no gosto. Não. Apenas discotecas dedicadas ao franchise idiota e minimalista das «batidas graves e ensurdecedoras», para usar a definição entusiasta de um jornalista do Público (entre aspas).

Pensa o viajante que o jazz vai bem com água fresca e guarda-sóis? Pensa mal, o esquisito. Bossa nova ou, vá lá, algo caribenho? Nãããã. Um pop/rock sem data? Cota.

O cardápio é simples, tão simples (ou elementar; ou básico, no sentido que a tropa dava ao termo), tão simples que mentes distraídas como a do viajante acreditariam se lhes dissessem que durante a tarde toda apenas uma faixa do CD tinha sido posta a tocar (quando na verdade teria sido toda uma exaustiva e, hum…, complexa, discografia de uma época). O cardápio é e só o prato do dia, de todos os dias e meses do ano. O prato do dia que alimenta um par de gerações como as piores indústrias alimentam porcos – com a diferença de que as «batidas graves e ensurdecedoras» não são um equivalente a ração para engorda, ainda que deixem o utente com o mesmo olhar e curiosidade intelectual de um chouriço espanhol.

Não há espaço para devaneios sonoros nas piscinas nacionais. Não há espaço sequer para relaxar, aliviar stress, dormitar sonhadoramente. O banhista simplesmente tosta ao sol com os pensamentos ao nível adequado (e ali generalizado) dos de um frango de aviário (posto no churrasco) ou dá umas braçadas tentando não seguir o ritmo frenético da banda sonora se quiser chegar sem distensões musculares à noite. Mais sensatamente, o banhista fecha o livro (que por razões insondáveis e também elas estultas julgou poder ler) e foge em pânico para o mais próximo charco de água da chuva que tenha sobrado do Inverno (vulgo rio ou barragem de difícil acesso).

Para ser justo, o viajante terá de referir que nem todas as piscinas são geridas como coutadas exclusivas de adolescentes duros de ouvido ou imbecilizados pelas drogas. Há um ou outro tanque onde o público adulto é bem-vindo – sobretudo se tiver acabado de chegar de França para arejar a sua maison sazonal. Tony Carreira e respectiva prole fazem-se ouvir de vez em quando. E também um tipo atento ao zeitgeist económico que canta «já não há papel nem para o WC». E outro que refere (com excitação científica ou enternecimento humanista, não percebi bem) uma qualquer patologia anatómica de um certo buraco que, «coitadinho», apenas serve para urinar.

Nesta altura o viajante tende a partilhar com certos concidadãos de longas barbas e trajes andrajosos que encontra pelo caminho uma visão apocalíptica do mundo. Para distrair, lê o jornal, e encontra então a definição acima citada da actual música de discoteca. Lê o jornal e, enquanto procura o ramo mais alto e resistente de azinheira para deitar a corda, constata que mesmo os festivais de Verão, como o da Zambujeira, já não têm as bandas como «força motriz que faz avançar a máquina». A força motriz, ao que diz o excitado jornalista, é cada vez mais a das «batidas graves e ensurdecedoras» que tencionam transformar os festivais em discotecas ao ar livre – «com remisturas do último single dos Coldplay e tudo»!

*Referência, hum, erudita e criadora de ambiente ao magnífico conto de John Cheever, que deu azo a um swim movie (com Burt Lancaster, se não estou em erro; vá confirmar ao Google, que eu vou nadar.)

quinta-feira, 11 de agosto de 2011

Teoria da conspiração

Citação do 31 da Armada no Público de ontem: «A Standard & Poor’s baixou o rating da dívida americana de longo prazo. Como é que ficam os teóricos (…) da teoria da conspiração americana contra a Europa?»

A precisar de rever a sua teoria. A conspiração existe e não é de ordem geoestratégica, mas ideológica. Ou nem isso: apenas, digamos, pragmática, de interesses particulares. Os países conspiram, naturalmente, mas o jogo no tabuleiro actual tem de um lado o capital (perdoem-me o palavrão e as suas conotações) e do outro a social-democracia. Obama é circunstancialmente americano, mas as suas ideias não tanto e escandalizam uma grande parte dos seus concidadãos, mormente os que mais beneficiam de um mundo regido pelos interesses monetários de uns poucos.

A S&P não agiu contra a América, mas contra Obama e o que ele representa. A minha teoria da conspiração diz que se o presidente fosse Bush ou um outro servidor da causa não haveria descida de rating. Sim, porque o endividamento para fazer guerras estúpidas (mas lucrativas para alguns, hélas) não é censurável, ao contrário do endividamento para sustentar políticas de interesse social, essa estanha forma de pensar.

Profetas em causa própria

Aparentemente, como se lê aqui e ali, o gesto da S&P iliba as agências de rating. Vejam, até baixam a cotação da América, como poderiam ser funestas estas agências? Como não reconhecer a isenção e a forma cristalina como actuam?

O Quarta República (igualmente citado pelo Público), a propósito do discurso de Obama, que, patrioticamente, clamou que os EUA serão sempre triplo A (como Sócrates faria – e Passos Coelho ou Cavaco depois dele), sugere que os governos deveriam ser geridos como empresas, e nas empresas os conselhos de administração abstêm-se, naturalmente, de interferir nas demonstrações financeiras. O Quarta República sugere que, tal como as demonstrações financeiras das empresas devem ficar a cargo de terceiros, “especializados”, os estados devem deixar a interpretação da sua saúde financeira às agências.

Sucede que as agências de rating não têm sido meros juízes imparciais. As suas opiniões determinam acontecimentos. Um pouco como quando um responsável da Porto Editora (um dos grandes grupos editoriais portugueses) prevê que os livros de poesia vão deixar de ser editados. É deste tipo de previsões auto-realizáveis que falamos.

Caos e anarquia

E já que estamos a falar de profetas e conspirações, fechemos em tom apocalíptico. Em Tony Judt pode ler-se que o estado social, nas suas diferentes formas, não foi apenas uma admirável criação generosa, altruísta, dos governantes do pós-guerra. Foi o resultado de uma leitura diligente da história das primeiras décadas do século XX. É preciso manter a classe média apaziguada – era esta a lição –, livre da influência de demagogos e dos seus próprios instintos aniquiladores. Os demónios à solta em França, na Grécia e agora na Inglaterra (para não falar nos países árabes) deveriam fazer soar campainhas. Mas não. Os mercados são mais importantes. No meio do caos e da anarquia, os condomínios de investidores e especuladores, vigiados por empresas de segurança privadas, hão-de sobreviver. Porquê preocupar-nos?