sábado, 25 de abril de 2020

O livro e a cultura

O editor e escritor Francisco José Viegas alerta há muitos anos, e com lancinante razão, para a tristeza trágica de termos um país sem uma política «favorável à criação de leitores e à circulação do livro». Fá-lo, por vezes, e é pena, opondo ao do livro outros sectores culturais onde a «incúria ou a indiferença» dos poderes será menor. Aconteceu de novo no artigo que escreveu esta quarta-feira no Público.

Defendermos que o livro e a leitura precisam de ser a grande prioridade de qualquer política cultural não nos devia tornar insensíveis a outras áreas. Por isso, a recorrente alusão de FJV ao sector do «espectáculo» com um certo tom de menosprezo compreende-se mas a generalização implícita e injusta desilude quem o lê e partilha as suas preocupações, fazendo temer uma mundividência algo truncada.

Julgo que concordamos que um dos grandes equívocos desta era, que perverte o apoio às artes, é tomar-se também como «cultura» actividades que com maior honestidade e proveito público se catalogariam de forma diferente. Manifestações, por exemplo, do domínio do mero entretenimento, em que sobretudo a moderna música popular é pródiga. Esta promiscuidade terminológica deixa sequelas legislativas e constitui a antecâmara de certa permissividade institucional na utilização discutível de dinheiros públicos, contribuindo, por isso, para a má percepção ou mesmo o antagonismo de alguma opinião pública.

E contudo uma parte do mundo do espectáculo, aquela que se refere por exemplo ao teatro e à dança e seus cruzamentos, padece de problemas análogos aos do livro. Também esta área, quando não coincide com o «espectáculo» no sentido superfluamente festivo e sobretudo decorativo a que Viegas alude, carece de uma política favorável à criação de público e à circulação de produções. Infelizmente, o sistema político e social vigente opera aqui do mesmo modo que expressa esta passagem essencial do artigo de FJV:
«“de cima” […] nunca vem um exemplo capaz de levar mais pessoas a ler, a querer ler ou a sentirem que a leitura é um importante instrumento de conhecimento e de diálogo com o passado e com o futuro, e também de elevação individual e participação na vida comunitária».
Experimente-se substituir na frase anterior, para alargamento da ideia e não como oposição a ela, o campo semântico da «leitura» pelo do «teatro» e compreenderemos como um dos problemas estruturais da cultura no país é, de facto, «a indiferença e a incúria», mas também o desdém ou mesmo a hostilidade, de diferentes poderes políticos e económicos.

A cultura, do livro ao teatro, tem demasiadas vezes essa função, nem sempre involuntária, de pin de lapela e item de checklist inofensiva ou politicamente correcta. É usada por dirigentes ou entidades como berloque em eventos auto-promocionais e exibida depois, com a aposição de um diligente visto burocrático, numa lista de pequenas penitências ou obrigações a que o moderno líder político não julga poder escapar — embora também nunca lhe ocorra ter nada de importante a fazer com ela.

No fundo precisamos de CEOs e de líderes e representantes políticos (no caso não demasiado provável de ainda termos onde os escolher) capazes de darem o exemplo a partir «de cima», capazes de adoptarem como lema para si mesmos e para as instituições que dirigem (a começar pelas televisões de sinal aberto e pelas grandes editoras) o slogan da RTP2: «Culta e adulta». Culta no sentido antigo de se ter mundo e leituras e adulta não no sentido de liberdade para a pornografia mas de fim da idade parva.

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