O meu Proust vai lento, previsivelmente lento. As trezentas páginas que li parecem-me equivaler, em tamanho e dedicação, a dois romances ou ensaios que tivessem sido escritos um século depois, de tanto que me obrigo a voltar ao início de cada longa frase para ficar com a certeza de ter entendido sem equívocos sujeito, predicado e complementos. Por vezes sugiro-me que poderia poupar o trabalho e ficar pelo tom, por uma ideia geral das partes, do enredo, mas depois obrigo-me a reconhecer que só no entendimento pleno das frases poderei captar a filigrana do estilo e do pensamento — essenciais, como sabia de antemão.
Nos melhores momentos, como há pouco, antes de ter tido a infeliz ideia de vir aqui lavrar este dispensável e humilhante testemunho, consigo aquele alheamento social e metafísico, aquela entrega incondicional, aquela imersão que fazem com que as frases se sucedam ininterruptas e musicais e inteligíveis, e vogo pelos parágrafos como um steadycam num longo plano-sequência, com a mesma agilidade mecânica e a mesma atenção fluida mas ávida e operante da câmara que ele suporta. Mas logo alguma coisa do mundo real, mesmo posto em quarentena, quebra o feitiço, e de novo tropeço, de novo agarro razões para retirar os olhos das páginas. Se não é o mundo real, é o pequeno mundo de referências vãs que me povoa a cabeça. Ao virar a página, os olhos passaram pelo marcador que estou a usar, um souvenir de Carcassonne, e logo me veio, obstinada, a lembrança de ter reparado nele quando, precisamente, coincidentemente, páginas e horas atrás, lia uma passagem onde Swann desprezava o arquitecto Viollet-le-Duc a propósito do castelo de Pierrefonds que Odette ia visitar pela mão dos agora odiados Verdurin — o mesmo arquitecto que tinha reconstruído a Carcassonne que eu visitara por intermédio da Ryanair.
Talvez a magia tivesse sido igualmente interrompida se o marcador fosse um recuerdo da Córdova judia, que também uso com frequência — não tenho falta de iniciativa na hora de procrastinar, e a interrupção nem sempre acontece quando estou menos enlevado. Esta, por exemplo, deu-se a meio de uma das passagens mais sublimes e que mais me prenderam deste primeiro volume: a chegada de Swann ao palacete da marquesa de Saint-Euverte, ela própria, a chegada, uma espécie de plano-sequência em que acompanhamos a «melancolia indiferente», sonâmbula mas observadora, do protagonista quando entra, é recebido pelos criados no vestíbulo, sobe a escadaria, é registado e entra na sala de concertos, onde nos espera a mais irónica e deliciosa descrição de tipos, comportamentos e relações sociais, os mais deliciosos pensamentos e diálogos a que a fauna se dedica enquanto o pianista tenta o seu melhor Chopin.
Talvez devesse ter lido Em Busca do tempo Perdido quando li outros grandes monstros, Montanha Mágica, Guerra e Paz, O Som e a Fúria, Ulisses (este com pouco proveito, reconheço). Naquela época conseguia as horas de dedicação sem reservas que hoje me faltam e, sobretudo, tinha o espírito menos vocacionado para alimentar as páginas inúteis de um blogue ou de uma rede social. Havia um tempo assim, recordo-me.
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