Na casa onde morava há duas décadas tinha bolas de cotão que tratava pelo nome, tal a intimidade e a antiguidade do nosso mútuo conhecimento. Na verdade, na altura li ou ouvi esta piada num livro ou numa soap opera e recorria a ela com frequência para dar um certo glamour decadente ao que era apenas desmazelo e preguiça. Hoje, nesta distopia súbita mas demorada ou sem retorno, continuo a pagar à pessoa que me limpa o apartamento, embora seja eu quem agora lida com o pó, os detergentes e a esfregona. Faço-o, o pagamento, por solidariedade, mas talvez também por gratidão mais ou menos consciente por ter tido nesta última década e meia alguém que, com diligência, a troco de uma verba que não era nenhuma fortuna, me deixava a casa habitável. E também com esperança de que alimentar uma certa normalidade seja a forma de garantir essa normalidade no futuro, de garantir que se isto passar ainda haja do outro lado, na outra pessoa, ânimo para me limpar a casa — um fio de Ariadne para sair do labirinto e continuar de casa asseada.
A normalidade na nossa vida depende da normalidade na vida dos outros, da sua sobrevivência, desde logo, e da sobrevivência da sua disponibilidade para tarefas que complementam as nossas e fazem a nossa vida mais confortável. Tendo em conta a crise económica violenta que nos anunciam para o fim da quarentena (vamos da pandemia ao pandemónio), diria que a normalidade das nossas vidas, a normalidade essencial das nossas vidas, passará por reinventar o capitalismo tornando-o mais solidário e redistributivo. Mas isto talvez seja só o comunista que há em mim a vir ao de cima enquanto vejo lá fora, na rua deserta, os homens do lixo a recolher o que produz um bairro confinado ao sofá.
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