Ler Proust* em quarentena pandémica é uma actividade que não se exerce sem certos momentos de culpa. À luz desta época e sobretudo desta retirada profilática, a experiência humana tem nas páginas da Recherche, ocupadas exclusivamente com personagens privilegiadas e anacrónicas, tanto de frívolo e distante e parece tão inoportuna e cínica a elevada experiência estética que a leitura representa que nos sentimos a transgredir, não o Estado de Emergência, mas as regras básicas não escritas da empatia humana. Avançamos cada página ciliciando-nos porque devíamos estar a ver conferências oficiais, a estudar gráficos e relatórios, a ler artigos de peritos em epidemiologia e especialistas em apocalipse económico e a assistir a directos da arte confinada no Instagram. E porém o que ficamos, quando despegamos do teletrabalho, é sentados a ler à janela, atentos às modulações da luz de Abril-águas-mil, espreitando as manobras imperturbáveis das nuvens sobre a serra — e escutando a conversa oca do senhor de Norpois ou pendentes de saber se haverá reencontro nos Campos Elísios entre Gilberte Swann e o jovem e tolamente atormentando narrador.
* Sim, continuo, volume 2.
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