Consta por aí (uma simpática leitora até me escreveu a informar disso)
que em três pinceladas Vasco Pulido Valente pintou no
Público o retrato certeiro e definitivo do Portugal recente — com o
nobre intuito de fazer o enterro do socialismo. Um
reverente blogue de direita
reuniu as palavras sagradas num
post que pode ser lido
neste link. (A
direita sempre precisou de um papa, e em Portugal a oferta aumentou exponencialmente
nos últimos tempos, mas algumas almas fascinadas parecem tê-lo encontrado sobretudo
na encantadora figura do decano cronista.)
Despertado na minha caverna pelo correio amável que me enviaram, lá fui
eu ler a trilogia pulidiana
“Esquerda e direita”, prometendo a mim próprio não
voltar a embirrar com o homem. Em vão.
Como retratista, Vasco não usa a paleta toda, pelo que as suas telas
resultam um pouco artificiais. Aquilo é real, sabemos penosamente que sim, o
autor tem talento para o desenho. Mas, como recusa uma mais plausível prolixidade
cromática nos acabamentos, a obra parece velada por uma fina gaze, como se o
mestre pusesse um filtro à frente do olho que deita ao modelo. Num relance, chega
a parecer uma daquelas gravuras vendidas em lojas de decoração que apostam numa
limitada gama de cores: uma serra em escala de azuis, o pôr-do-sol em escala de
laranjas, estão a ver o género.
Sem
piedade, a
trilogia conclui que o
socialismo (ou a social-democracia) foi responsável pela crise nacional e
europeia — e o Estado Social foi o seu instrumento. Ora, os americanos,
mormente a feroz percentagem republicana deles, parecem não concordar. Começam,
aliás, por não concordar que exista uma crise
só europeia. Parece, diz-se na campanha republicana, que a pátria
da liberdade (e da recusa do Estado Social) está terrivelmente endividada, tem
um défice preocupante, cresce menos do que desejaria, entrará provavelmente em recessão,
vê o desemprego aumentar com perigo para a estabilidade social, etc. Os
sintomas, dirão eles para proteger o orgulho ianque, são “europeus”, agravados
por um presidente “socialista”. Mas nós sabemos o quão
socialista Obama tem podido ser, e como a economia americana divergiu
profundamente da sua ortodoxia.
O
retrato pulidesco tem assim, talvez, de ser retocado — antes que os óleos
sequem. (Depois disso, só uma equipa de restauradores do Louvre o poderá fazer,
e nós não temos assim tanto tempo
para esperar.) Se eu próprio não tivesse abandonado os pincéis e o atrevimento,
propunha portanto ao insigne artista que matizasse a sua tela com uma das duas
seguintes cores (ou ambas):
1) Talvez não tenha sido a social-democracia a falhar,
mas o próprio capitalismo, tal como posto em prática;
2) O despesismo, a corrupção, a incompetência da
máquina fiscal, a mitigada redistribuição de rendimentos, a especulação
financeira, etc. são em si responsáveis pela crise, independentemente do
sistema em que ocorrem.
(Quando se pinta um retrato de uma entidade viva, convinha,
de resto, não esquecer 2008. A elipse
foi uma figura de estilo inventada por Estaline para a fotografia, não para a pintura.)
Claro que o pulido cronista, quando isso não lhe
atrapalha a argumentação para uso no flagelo doméstico, estende o problema ao
Ocidente inteiro, sem que então lhe interesse assim tanto distinguir sistemas.
Ou seja, para ele a peçonha é, consoante os dias, uma particularidade da Europa
(que tem no socialismo e em Portugal os seus mais desprezíveis cultores) ou do
Ocidente inteiro (se a prosa tiver uma ambição mais universal e exacta e menos luso-moralista).
De uma forma ou doutra (e aqui não se engana nada), a crise é dos países que tiveram
preocupações com o bem-estar dos cidadãos. Daí alguma direita (não só ela)
andar agora fascinada com a China, esse sábio sistema que aproveita o melhor do
capitalismo sem se tornar sentimental. Os sentimentos sempre foram um
empecilho quando se trata de criar riqueza. Para alguns.