quinta-feira, 9 de outubro de 2014

Tudo o que era certo e errado

«A minha mãe nasceu num casebre com piso de terra e duas divisões, numa das quais vivia o gado, uma vaca e um burro — suponho que há pouca originalidade nisto, disse eu. Jantava com Leonardo num restaurante novo e gastei pouco tempo a estudar o espaço, um japonês de asséptico minimalismo. É fastidioso tentar perceber o que cresceu mais depressa, continuei, se a família se o número de animais, mas ainda que ambas as expansões denunciassem uma certa prosperidade, isso não aproximava a infância dela dos padrões mínimos de conforto que hoje reivindicamos, nem acrescentou compartimentos à casa, à excepção de um telheiro sem paredes. Com oito anos e três irmãos mais novos viu-se investida de responsabilidades maternais e mandada diariamente para os montes atrás de uma pequena manada de vacas indolentes. Não sei se há um momento limite para a salvação — se decidirmos considerar que retirar alguém de um mundo rústico daqueles salva —, mas o resgate da minha mãe aconteceu talvez um pouco tarde, deixando-a num limbo entre duas existências. Não era demasiado tarde para alguma escolaridade, mas havia já uma vida de memórias indeléveis, todas efectivamente marcadas na pele.
Leonardo estava a gostar do peixe cru; eu aproveitava a minúcia que os hashi permitem para debicar como alguém devoto de uma filosofia ascética. Andei muitas vezes pelo território onde ela guardara gado, disse, mas só no fim senti ter incorporado um pouco daquela experiência. Faltava-me, claro, a herança genética, e de todas as versões da história a única que me penetrou com força foi a última, quando ela se despiu de vaidades, de vergonhas, quando deixou de interpretar ou justificar a sua própria vida e, solicitada pela velhice, apenas reviveu, com distanciamento, ou talvez com alegria feroz, um conjunto de factos.
Creio que há uma certa justiça na senilidade, dei por mim a dizer, em algum momento as pessoas deveriam sentir-se livres para falar de si próprias e das suas vidas sem o peso da moral. Claro que a minha mãe acreditava na vida depois da morte e por sua vontade deixaria as confissões e os ajustes de contas para o outro lado ou para a sua antecâmara, mas por vezes a biologia antecipa o alívio. A degenerescência convidou-a a esquecer a religião e a tomar as coisas pelo lado físico, brutal, que elas tinham representado para si. A destruição dos neurónios começou por aquele punhado deles que se ocupava das conveniências.
Também para mim era uma experiência inesperada, disse eu a Leonardo. Um ano antes de ela morrer, era uma outra mulher aquela que eu levava a revisitar a aldeia na montanha onde nasceu. O exercício do dever filial há muito deixara de ter significado para mim, mas de repente aquilo revelava-se algo diferente. Tomava-a pelo braço e sentia uma corrente de afecto, uma vontade de a abraçar e de a beijar, o que passei a fazer com uma frequência que não punha em prática desde a infância.
Também eu, por razões diferentes, tinha entrado num estado amoral, ou pelo menos associal. Vais-me censurar por dizer isto, disse a Leonardo, mas tive uma espécie de flirt com a minha mãe nos meses que ela levou a morrer. Era algo que não nos estava vedado, não éramos consanguíneos, não havia nenhum tipo de jurisdição sobre nós que não fosse pura convenção, e a isso já não ligávamos, enlaçávamo-nos apenas, nas encostas da sua infância, ela a achatar camadas de memórias e eu, galante, ao serviço da rapariga em que ela se transformara.
Dançávamos, porque, ao mesmo tempo que recordava cada uma das vacas que pastoreara, lhe vinham memórias de bailes em que não participara, ou que aproveitara pouco. A dança era, aliás, logo a seguir ao canto, uma parte fundamental da sua existência, dizia-me ela e dizia eu a Leonardo. Achava-se uma tola por algum dia ter sentido timidez, ligado às conveniências, dado prioridade aos deveres. Havia um filme, como se chamava?, dizia a minha mãe, em que uma moça bonita cantava e dançava nas montanhas da Suíça. Eu sabia que era na Áustria, Música no Coração, mas que importavam estas clarificações quando me podia limitar a rodopiar com ela nos braços, bebendo da sua felicidade, zelando para amortecer as suas quedas?
Ali em baixo, dizia a minha mãe à vista das ruínas do casebre onde crescera, ali em baixo não viviam pessoas, viviam animais. Não digo isto com mágoa nem nostalgia. Era assim. Éramos assim. Agíamos por impulsos e necessidades, como o gado do outro lado da parede. Quando vi o meu primeiro lobo, aqui mesmo onde estamos, senti medo, claro, ia nesse sentido a escassa instrução que tínhamos, mas também me achei em pé de igualdade com ele. Durante toda a vida pensei nestes encontros como se fosse uma pobre criança indefesa à mercê de uma fera sem compaixão, mas ultimamente vejo as coisas de outra forma. Sabes, dizia a minha mãe e repeti eu a Leonardo, acho que agora me lembro melhor de tudo. Eu não ficava petrificada, nem os lobos estavam convencidos da sua superioridade. Medíamo-nos com respeito e curiosidade, muita curiosidade, e depois eu pensava que tinha de proteger as vacas, que tratava pelo nome próprio, e de me salvar de uma sova em casa: pegava em paus e pedras e gritava-lhes, aos saltos, como aqueles chimpanzés da televisão. Podes-te rir, não me envergonho da comparação, eu era pouco mais do que uma macaquinha, trepava às árvores e nadava nua no ribeiro — depois é que tive de aprender tudo o que era certo e errado.»

in Hotel do Norte

'Teoria Geral do Verão'

«Mário foi o primeiro a chegar. Acordou com o dealbar do dia. Na verdade, quase não dormiu, sentia demasiada excitação. Estar ali era como ter congeminado um teorema e ser-lhe oferecida depois a oportunidade de o testar e demonstrar ele mesmo. Já tinha um nome para aquilo, passou a noite com ele na cabeça: Teoria Geral do Verão. Basicamente, a sua ideia postulava que não havia felicidade na chuva, no vento, no frio, nos dias cinzentos e ensimesmados. O estio era o quinhão de paraíso que Deus legara à Terra, um vislumbre do que esperava na outra vida os bons, os justos, os impolutos. Era talvez também a manifestação do Seu sadismo, permitia-se Mário pensar, já que Ele sabia como falhara com o homem. Desvelar o paraíso era como mostrar imagens de fontes e lagos suíços a um moribundo no deserto africano ou deixar um suculento naco de carne meros centímetros fora do alcance da corrente de um cão esfaimado.
Tinha havido alguns erros no desenvolvimento humano, no seu desenvolvimento biológico. Havia tanto que aprender com aves, répteis, insectos. A selecção natural falhara ao fazer do homem um animal sedentário. Não tardaria a perceber-se porque definhava a civilização ocidental, por que é que o Hemisfério Norte se fazia triste e evitava reproduzir-se. Por que se suicidavam os nórdicos (por enquanto eles). Séculos de saber acumulado e ainda não havia uma solução para o mal-estar. E era tão simples: migração sazonal ou hibernação.
Lembrava-se de um episódio: dois casais de patos a esvoaçarem sobre uma albufeira. Talvez não fossem dois casais, podiam ser quatro machos ou quatro fêmeas, ou três de um género e um do outro, quem saberia dizê-lo? Era um daqueles dias de Outono apelidados de perfeitos, um dos que se rejeitariam na Primavera ou no Verão (demasiado frios e cinzentos, com o maldito nevoeiro a ameaçar cobrir tudo) e que pela sua pouca dureza seriam ignorados no Inverno, mas que, com um fundo de folhas coloridas e uma promessa de lareira, pareciam irrepetíveis. Mário estava com o pai e lembrava-se de o ver subir a gola do casaco ao mesmo tempo que falava de castanhas assadas e vinho tinto. Ali, ao seu lado, trinta anos antes, com a elegância enfiada num fato de três peças e camisa branca, o cabelo submetido pela brilhantina, o pai de Mário explicava que o pato selvagem era uma espécie rara naquelas paragens e a lagoa era apenas uma estação de serviço onde eles se detinham para abastecer no caminho para África, para terras mais quentes. Mário a tremer de frio e desconforto, insensível à beleza outonal, invejou a inteligência dos patos.
O europeu era intrinsecamente estúpido: rumava a sul no Verão e procurava a neve no Inverno, quando o que devia estar a fazer era aprender com as aves, descer uns quantos paralelos à medida que os dias diminuíam e regressar logo que as plantas ameaçassem florir. Claro que este tipo de migração em massa enfrentava obstáculos severos, por mais que os serviços de turismo do Magrebe esfregassem as mãos. As grandes deslocações de Estaline não tinham ficado bem vistas (mas essas não incluíam bilhete de volta); contudo, pondo de parte a engenharia social, ainda havia a biologia, a hibernação induzida. Se o homem, no seu longo percurso evolutivo, recusara um metabolismo como o dos ursos, estava ainda muito a tempo de se reencontrar por via científica com esse ramo da família. O que não se pouparia em recursos se a Europa adormecesse no Inverno. E o que se ganharia em felicidade social se todos saíssem do quarto apenas em Abril ou Maio, quando o Sol mostrava finalmente músculo.»

in Aranda

segunda-feira, 15 de setembro de 2014

13/9 ou a arte de procrastinar resolvendo sudokus

Gostaria de poder dizer que sou um daqueles procrastinadores que o filósofo John Perry considerou “produtivos”, aqueles que enquanto adiam indefinidamente uma tarefa realizam muitas outras igualmente importantes. Não sou. A não ser que se considere importante resolver sucessivas colectâneas de Sudoku Master.
A minha pilha de livros para ler só não aumentou porque desde que há crise quase não tenho comprado livros. Em contrapartida, a minha pilha de livros por escrever aumentou consideravelmente. Não porque ande a coleccionar apontamentos de ideias para romances ou ensaios (o sudoku não me deixa tempo para isso), é só a idade a acumular-se sem que daí resulte obra.
Para bem da minha sobrevivência física, sou tecnicamente incapaz de procrastinar no emprego (qualquer coisa genética, herdei do meu pai isso e a rabugice). É só ao chegar a casa que adopto o hedonismo pessoano de ter um livro para ler (ou escrever) e procrastinar. A coisa está tão grave que já não compro o Público ao fim-de-semana, como antes, por causa do Ípsilon, da Fugas ou da 2, mas porque é nesses dias que saem os sudokus de maior grau de dificuldade (que naturalmente me farão perder mais tempo).
Nem me posso defender dizendo que a ginástica dos números me foi prescrita pelo meu intelectual trainer: passar a noite naquilo não me põe mais ágil na tabuada (continuo bastante dependente da calculadora) e definitivamente não acordo com a mente mais preparada para as obrigações do dia. Procrastinar por interpostos sudokus é antes um vício tão alienante como a coca. O hábito poderia ter-me sido prescrito, isso sim, pelo meu psicanalista, com o intuito de me fazer limpar a mente depois de dias intensos de trabalho (como faz o resto dos portugueses, submetendo-se ao brainwashing da TV). Ou melhor: a sudokumania é coisa que recomendariam no Conde Ferreira ou no Magalhães Lemos: terapia ocupacional para distrair os malucos de fazerem maluquices. Sim, que disparates não teria eu escrito se não tivesse passado o Verão a preencher números em linhas e colunas?

Quando terminei de escrever Os Idiotas (que, a propósito, fez sexta-feira um ano e é a única razão para ter escrito este post), senti que tinha finalmente atingido a maturidade, estava pronto para ser o Wallace português (ou o Franzen, pronto*). Mas senti também que a probabilidade de falhar nisso era muito, muito grande. O sudoku, temo bem, é apenas um dos meus álibis para não arriscar falhar.
* Também gosto de passarada e na verdade não sou lá assim muito de notas de rodapé.

quinta-feira, 11 de setembro de 2014

O regresso da cantora careca


Ontem e hoje assisti no Youtube a dois regressos: U2 e Sinéad O’Connor. Sendo um genuíno filho dos eighties, não fico indiferente a notícias que se relacionem com gente desta. Mas ouvi com total indiferença a “nova” música dos U2 (indiferença não, um tédio assassino) e com bastante curiosidade a da Sinéad. “Take Me To Church” entusiasma, raios!, apesar do final fraco e de a imagem da cantora, pareceu-me, não ter escapado ao Photoshop, ou ao equivalente em vídeo ou maquilhagem.
Nos últimos anos, sempre que calhava cruzar com Sinéad O’Connor no Youtube, assistia com certo embaraço (e desapontamento) a entrevistas um pouco constrangedoras de uma senhora de meia-idade desnecessariamente gorduchita, notoriamente aborrecida e até ressentida por estar a dar entrevistas ou a apresentar canções, quezilenta, a responder com dissertações esotéricas ou implicativas, desagradáveis, a questões banais sobre a sua música. O anjo que conhecêramos quando adolescentes lamentavelmente desaparecera sob o diagnóstico de distúrbio bipolar que Sinéad um dia revelara de si mesma. A cantora careca — pensava eu, definitivo —, envelheceu mal.
Mas o adulto que agora somos compreende na pele isso de envelhecer e aprecia novos fôlegos do talento, mesmo que breves e isolados, quando os ouve. Era este o meu espírito quando, espevitado pelo vídeo, fui espreitar o álbum completo (“I’m Not Bossy, I’m The Boss”), disposto a perdoar aquilo do Photoshop. Mas eis que, junto com várias outras canções bem inspiradas, no lugar de um anjo caído deparo com uma gloriosa Fénix. (Depenada, é certo — mas neste particular quem esperaria outra coisa?)
Os vídeos de entrevistas e concertos que agora me surgem nos lugares cimeiros do Youtube mostram uma Sinéad O’Connor coberta de hieróglifos e Cristos de Cecilia Giménez, sim, mas de novo elegante, simpática, comunicativa, assertiva, aguerrida, coerente, bem-disposta, exibindo empatia com o público e os entrevistadores. A interpretar com gosto as suas mais recentes canções e a emocionar o público e os voyeurs do tube.
A Wikipedia diz que a cantora já há uns anos tinha desmentido o seu próprio diagnóstico de distúrbio bipolar, mas isto não me parece credível. Por definição, o novo momento da cantora desmente-o, aliás. O que me parece é que, para bem de todos os fãs, finalmente alguém acertou na medicação. Passem a receita ao Bono.

quarta-feira, 3 de setembro de 2014

O apêndice marital

É tristemente irónico que Siri Hustvedt, escritora de talento, erudição e densidade intelectual, com obra e reflexão sobre preconceito de género, seja apresentada em Portugal como esposa de Paul Auster. Percebo o atractivo comercial da informação, mas, quatro livros depois — o penúltimo intitulado “Verão Sem Homens” e o último versando sobre «os preconceitos que imperam no mundo da arte» — quatro livros depois, perturba que a D. Quixote continue a incluir nas badanas o apêndice marital. Quantos escritores masculinos são apresentados como maridos de não sei quem? Eu, se fosse a Siri Hustvedt, mandava passear a D. Quixote no próximo livro. Se a editora não consegue vender-lhe as obras pelo mérito ou se os portugueses não as compram senão pelo popular marido, não a merecem. E, claro, não a entendem.

Os homens sobre as mulheres

Noto como intelectuais, escritores e homens afins se assemelham ao cidadão comum no que se refere a considerarem as mulheres uma coisa à parte (ainda que não exactamente, ou não sempre, com um intuito discriminatório).
Quando denunciam a seu espanto, a sua estranheza, a sua admiração, a sua permanente perplexidade com as mulheres parece-me que estão, com frequência, a revelar o quão pouco ou distantemente convivem com a variedade feminina.
Não há isso de as mulheres serem assim ou pensarem assado. As mulheres não são um grupo homogéneo, como os homens o não são. Não são mais agrupáveis entre si do que com homens. É possível agregar pessoas por graus de afinidade psicológica, mas disso não resulta que tenhamos mulheres aqui e homens ali.
Quando Pedro Mexia escreve que «o gosto das mulheres nem sempre é compreensível, mas raramente é infundado» não está (e ele sabe disso) a falar das mulheres, mas de algumas mulheres, daquelas que lhe são próximas, física, intelectual, ou, diria, oniricamente.
Quase tudo o que os escritos masculinos sobre mulheres dizem pode ser aplicado com propriedade — e não necessariamente com promiscuidade — a uma quantidade não desprezível de homens. As mulheres são apenas, tradicionalmente, convencionalmente, o outro mais confortável para a discorrência masculina. (Não raro são o biombo de outro outro, mas isto já é derivar.)
Séculos de confessionalismo masculino sobre as mulheres resultaram nisso a que também se chama poesia, uma espécie de obscurantismo de divã que, em obediência a uma teoria institucional da arte (masculina, naturalmente), foi como arte validado.

terça-feira, 2 de setembro de 2014

Já ninguém lê o Tio Patinhas no Verão

«Já ninguém lê o Tio Patinhas no Verão e não sei bem o que fazem os putos no Verão. Talvez ainda joguem às cartas, mas para o Patinhas já não têm tempo. Fico às vezes a vê-los, todos iguais, como clones saídos de uma máquina que tivesse sido inventada para fazer face à crise demográfica. O mesmo cabelo cuidadosamente despenteado, os mesmos ténis de marca, as mesmas t-shirts, as mesmas calças de ganga pré-rotas — porque eles já não rompem os seus próprios jeans, não os vestem durante tempo suficiente para que eles se rompam, têm de os comprar previamente esgaçados. É a geração MTV, diz-se. Mas pergunto-me se a nossa não era também uma geração qualquer coisa — pós-punk, new wave, dos primórdios do videoclip, ou ainda não isso, a geração jornal Sete, algo do género. Seja como for, quando se é adolescente sente-se uma necessidade grande de copiar, e nem sempre se copia o melhor ou o mais adequado. Sabemo-lo quando regressamos de uma desintoxicação e temos a certeza que vamos recair, porque algures lá atrás experimentámos qualquer coisa que era imensamente fixe mas trazia inclusa a receita da nossa destruição.
Os montes em Aranda ardem com admirável regularidade e o vento percorre o vale como se soprasse num túnel. Nessas alturas recebemos na cara o seu bafo quente, impregnado de cheiros, e eu por vezes penso em corpos cremados, milhares de fantasmas arrancados do solo, e é a energia deles que nos toca, são as cinzas deles que vemos cair no chão da varanda, as suas memórias que nos visitam e avivam as nossas.
Passaram três carros particulares para o hipódromo, mas foi o táxi o que mais me intrigou. Um perfil, um rosto, os cabelos ondulados. Era uma lástima que não pudesse distinguir-lhes a cor, a cor dos cabelos, como tinha sido uma lástima deixar de ver o casaco vermelho do Tio Patinhas, o dólman azul do Pato Donald, a camisola amarela do Peninha, a laranja do Pateta, as penas verdes do Zé Carioca, toda a paleta viva saída dos lápis de Walt Disney.
A cor era uma das componentes das trips: voltávamos às drogas também pelas explosões de cor, pelas cornucópias e espirais psicadélicas, os abismos e túneis curvilíneos, labirínticos, os milhares de cintilações e raios, um firmamento extático que a natureza não podia copiar, porque com as cores vinham sensações físicas fabulosas, elas agiam como agulhas na acupunctura, cada cor o seu prazer; e não havia tempo, ali, cronologia, era um hiato infinito. Não tínhamos como saber que as visões fantásticas que desfrutávamos eram o nosso próprio cérebro a explodir, os neurónios que queimávamos, a fissão das sinapses. Andávamos nos ácidos e chutávamo-nos para ver por dentro o fogo-de-artifício na nossa cabeça e não o sabíamos; o cavalo era o bilhete que comprávamos para assistir ao vivo e em directo à auto-destruição da mente.
Depois veio uma tarde como esta, à varanda, Verão, a nostalgia benigna de mergulhar numa aventura do Tio Patinhas. E as cores a esbaterem-se, a desaparecerem, como se alguém tivesse escolhido a opção transformar em escala de cinza do Photoshop. O universo Disney a preto e branco, como algumas histórias em certas edições mistas. Mas não adiantava virar as páginas, avançar ou voltar atrás até aonde havia cor; de repente toda a edição estava descolorida, a própria capa, em papel brilhante, plastificado, era cinzenta.
Talvez não tenha sido assim de imediato, talvez eu tivesse perdido as cores de forma progressiva. Como o cabelo: não recordamos cada centímetro que ele cresce, mas sabemos, na altura de o cortar, que um dia o tivemos curto. Ou, se formos carecas, não recordamos a queda, mas a cabeleira que deixámos de ter. No entanto, é desta forma que eu lembro as coisas, num momento o mundo era normal e no seguinte parecia um filme do Frank Miller, redundante como um filme de Frank Miller. A vida já era suficientemente soturna, não havia necessidade de sublinhar o facto com o preto e branco. Eu percebo que os espectadores dos filmes precisem de uma representação gráfica da atmosfera para melhor entenderem a ideia, mas eu não era um espectador, não observava de fora.
Acromatismo. Havia os daltónicos, que confundiam o verde com o vermelho — coisa chata em dia de derby desportivo ou quando se esquecia a ordem das luzes num semáforo — e havia eu, um caso extremo e raro de discromatopsia. Não era apenas estar na merda, olhar em volta e ver tudo cinzento como num dia de chuva. Não era alucinação, supondo-se que há alucinações descoloridas. Não era passageiro. As substâncias químicas têm destas coisas, ninguém sabe muito bem o alcance dos seus poderes, como algumas personagens da Marvel. Um dia salvam a humanidade de ameaças terríveis e no seguinte caem em desgraça e destroem tudo aquilo em que tocam. Eu conhecia (e apreciava) enredos destes — não contava era ser vítima de um deles.
Ruivos. Adivinhei-os ruivos, aos cabelos que passaram na parte de trás do táxi. Tão ruivos que evocavam os montes em chamas de Aranda e tão ruivos que me doía a alma por não os poder já ver desta forma.»

Pedro, in Aranda