segunda-feira, 15 de junho de 2020

Sobre estátuas

Havia na minha adolescência uma única estátua, discretamente plantada à direita da escadaria que da Avenida das Nascentes sobe para o Casino, no parque termal. Ali se postava uma figura em bronze vagamente churchilliana, com o seu fato de três peças, chapéu na cabeça, corrente de relógio e charuto. Sabíamos-lhe o nome (estava escrito na legenda), mas ignorávamos quase tudo sobre o homem: J. M. Lopes de Oliveira, capitalista (na acepção antiga), co-proprietário da Companhia das Águas de Pedras Salgadas, responsável por uma das fases de expansão da estância (desígnio alcançado com lucro, ou decerto não haveria homenagem dos seus pares).
Não me lembro que vandalizássemos grave ou duradouramente a estátua, tanto porque nos escasseavam ideologia e motivação como porque éramos produto de uma educação em parte baseada no respeito, devido a praticamente tudo, merecesse-o ou não. Mas o volumoso Oliveira, de proporções generosas só um pouco ampliadas pela escala da estátua, não se livrou de uma ou outra intervenção artística efémera, que consistia em enfiar-lhe entre os dedos ou em quaisquer interstícios do bronze sobras vegetais do exuberante espólio botânico do parque ou restos das noitadas na discoteca do Casino. Nunca ocorreu a ninguém, que me lembre, sobretudo talvez porque felizmente dava demasiado trabalho, ir a casa procurar uma lata de tinta que assegurasse maior longevidade à expressão artística e desse às autoridades de então a oportunidade de se revelarem magnânimas ou sinistras — dependendo do sentido com que afirmassem que o vandalismo se combate com limpeza.
Mas, por outro lado, em instantâneos registados em película ou apenas na lembrança, gerações inteiras de nativos e visitantes posaram encostadas ao fotogénico Oliveira, tantas vezes, temo bem, fazendo figuras que lhe não honravam a memória.

De todo o modo, não sendo Lopes de Oliveira que se saiba uma figura odiosa, é justo que a sua estátua tenha sobrevivido incólume no habitual semi-anonimato, livre de um revanchismo injustificado. Ainda que isso não lhe garanta a eternidade, porque, desenganem-se, os atentados ao património e à memória histórica não resultam sempre do niilismo delinquente ou a da fúria social: ali o vandalismo tem sido sobretudo cometido pelo desinteresse ou pela acção demolidora dos capitalistas que sucederam ao homem de bronze.

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