quarta-feira, 13 de maio de 2020

A tennis tale

Nos meus serões hipnóticos de ténis (ainda faço alguns, sim) passei neste fim-de-semana pelo jogo em que Serena Williams achou mal as decisões do árbitro Carlos Ramos. No torneio verbal e comportamental que se seguiu, em que os serviços estiveram todos do lado dela e o árbitro se limitou a receber a bola na raquete, ripostando porém penalmente, vi eu, em absoluto embrenhado no meu Proust e ainda ponderando as questões sociais do post que antes dediquei à modalidade, uma metáfora das disputas na alta sociedade fin-de-siècle entre aristocracia e burguesia, ambas poderosas, mas com diferentes pedigree, meios e métodos.
Serena, que equiparei em novo delírio, pelos títulos acumulados, a velha condessa, indignou-se a certa altura, levemente, com a intromissão de alguém com um cargo sobretudo técnico — portanto burguês — nos seus affaires. De início foi apenas um arrufo de nobreza antiga, um abanar de leque para delimitar territórios, traçar linhas no court. Quando porém notou que o contabilista, alcandorando-se na sua alta cadeira em juiz moral, no fim de contas mantivera nos livros a falta que ela, ao penhorar a sua nobre palavra, achara ter já liquidado, fez o que teria feito qualquer duquesa no seu lugar: chamou-lhe ladrão (termo aliás de forte pendor técnico). Tendo o burguês insistido nas coimas, assim pondo a cobrança materialista própria da sua classe acima das etéreas prerrogativas do sangue, aconteceu a Williams o que aconteceria até à princesa ou ao príncipe mais bastardos: saltou-lhe a real tampa e daí em diante toda a indignação avulsa a que pudesse recorrer, de indicador em riste e lágrima de cristal pendente, seria uma boa indignação.
Um ano depois, já recomposta e de novo rainha dos seus pergaminhos, a tenista, palpando o tutu do traje de serviço, deitava água na fervura à boa maneira fidalga, com a adequada altivez que os assuntos materiais nos exigem: «Carlos Ramos? Não sei quem é.»

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