A música, como a literatura, transporta-nos. É um velho cliché e, como
tantos velhos clichés, uma verdade. Mas em alguns momentos da minha vida a
música foi para mim menos Ambrósio e
mais Mr. Scott, não tanto por o meu imaginário
permanecer intergaláctico mas porque a deslocação promovida pela música era do
género teletransporte, sugava-me a alma e materializava-a através de um feixe numa
realidade paralela. Só assim se compreende, por exemplo, que certa noite na alta
adolescência eu subisse a rua e em vez de torcer o nariz ao rádio que a Maria
da Luz sintonizara em volume de arraial no passeio desse por mim a dançar a “Billie
Jean”, do Michael Jackson. É certo que tinha andado a tentar aprender a linha
de baixo da canção, mas geralmente mantinha na intimidade esse tipo de desvio
de personalidade. Era Verão e havia possivelmente lua cheia, mas não me lembro
de nenhuma visão que quase me parasse o coração (caso contrário teria dançado o
“Thriller”). Aquilo era abdução pura, um metafísico tabefe gaulês que de mim só
deixava as sandálias em modo moonwalk
no passeio. Era eu por interposta pop a convidar o Álvaro de Campos sensacionista
que havia em mim a calçar os meus sapatos (sim, felizmente também me acontecia
a ouvir Depeche Mode, mesmo antes de eles terem gravado a canção). Depois a
música acabava — depressa demais, como sempre acontece com a pop/rock (que
saudades tinha do Barroco) — e lá ficava eu aturdido a sacudir o pó da roupa
como se tivesse acabado de fazer a Route 66 ou de acompanhar Bento de Góis na
primeira viagem europeia terrestre da Índia para a China (e toda a gente sabe
como ficamos cheios de pó se vamos a pé da Índia para a China).
(e o cinema...)
ResponderEliminar