quarta-feira, 28 de dezembro de 2011

Três quadros de Inverno

1. A árvore da vida

Altura da poda. O homem novo, talvez numa ocupação de férias natalícias, usa uma escada de metal reluzente e, por vezes, uma tesoura com uma extensão que lhe permite trabalhar a partir do solo. O idoso sobe para os galhos por uma velha escada de madeira camba e, em equilíbrio vertiginoso, apara os ramos com a clássica tesoura preta que também se lhe vê nas mãos em época de vindimas. Há a história do velho, o rapaz e o burro, mas é inadequada. A partir de certa idade, a poda é uma questão pessoal. O velho mais depressa treparia a oliveira, como quando em rapaz ia aos figos, do que usaria a escada nova e a ferramenta fashion do filho ou genro. É este que precisa dos apetrechos e das luvas do Mestre Maco. As mãos do velho estão calejadas, e subir a pulso a árvore da vida fará parte do seu quotidiano até ao último dia na terra. Vive enquanto a pode subir, morrerá de não a poder subir.


2. A vil existência

Pouco depois das quatro da tarde ocorrerá o pôr-do-sol. Embrulhados nos seus kispos e forros polares, os caminhantes cumprem apressados a prescrita hora ou hora e meia de marcha junto ao rio. Os amantes da corrida fazem desfilar calças de licra, gorros e mp3. Ela usa calções de perna comprida e justa e uma sweatshirt larga. Numa curva, a última curva antes de a sombra estender por todo o lado o seu manto irrevogável, ela tem a intuição do fim da luz e detém-se. Abre os braços, levanta o rosto ao deus-sol e sorri. É bom estar viva, apetece abraçar o astro. Cinco segundos de carícia e alheamento, e ei-la de novo num trote firme, o sorriso agora embaraçado, talvez por a vil existência ter regressado nos olhares dos transeuntes, que tentam encontrar-lhe no rosto sinais de um espírito débil ou excêntrico.


3. Encruzilhada

Vestidos com as prendas de Natal — casacos Lanidor e Massimo Dutti, calças Tiffosi ou da Salsa, peúgas e roupa interior a expensas rituais de tias idosas —, passeiam no parque o carrinho de bebé. Com uma criança dentro, deduz-se, não se vê. Eles também não a vêem: ela senta-se num banco a olhar um ponto fixo, talvez do passado, ele fica de pé a observar o trânsito de famílias e casais. Ambos com rostos graves, diferentes do cliché de uma tarde bonita no parque. Entre os dois, o carrinho. Estático porque o terreno é plano — ninguém o segura, jaz por instantes abandonado, troféu de um jogo de forças em que possivelmente fica com o prémio quem perde. Talvez numa parte dos seus espíritos apetecesse que o carrinho começasse a deslizar para fora das suas vidas, pudessem sair dali cada um por seu trilho do parque, desejando esquecer que um dia estiveram numa encruzilhada. Mas um deles há-de voltar a empurrar o carrinho, provavelmente a mãe, mesmo que seja para seguir o seu próprio caminho. Ou as catorze estações do Calvário.

terça-feira, 27 de dezembro de 2011

As pessoas em concreto

Há muito tempo que não lia Pacheco Pereira e já não recordo quão frequentemente ocorria a palavra «imbecis» nos seus escritos, para mais impressos. Mas é bom lê-la, sobretudo no contexto: 
«(…) Há uns imbecis nos blogues que acham que falar dos problemas concretos das pessoas que não são fils a papa, publicitários, gente de glamour, neoliteratos, assessores de várias eminências, yuppies sem mercados, consultores, advogados de sucesso, é neo-realismo. A única coisa que se lhes pode perdoar é não saberem o que a palavra significa, mas tudo o resto não e perdoável nem mesmo com muito "espírito de Natal".»*
Infelizmente, o meu problema com as coisas concretas é inverso. Salvo excepções, é quando penso em concreto nas pessoas que me torno entusiasta de Passos Coelho. E de Torquemada.

Alguns estão prontos a insinuar, por isso, que o uso da abstracção faz de mim um utópico da laia de Rosseau. Mas diferimos, o francês e eu. Ele via bons selvagens. Eu vejo selvagens — mas não acho isso bom.

Por outro lado, os liberalecos da direita e eu não estamos, de certa forma, em radical desacordo. Números, índios-de-cu-ao-leu: é indiferente como encaramos as pessoas — desde que não tenhamos de sociabilizar.


*Público de 24/12

Pacheco

Reencontrar a prosa de Pacheco Pereira (no blogue ou nos jornais) e ver nela alguma coincidência de pontos de vista reforça a convicção de que não é preciso ser-se de esquerda para perceber a intrínseca leviandade ou estupidez de certo discurso tão propalado pela gente de Passos, no Governo, nos jornais ou nos blogues.
«É particularmente irritante, e socialmente perigoso, que acrescentem à miséria uma lição moral do género "têm o que merecem porque viviam acima das suas posses", todos contentes com a purga moral do país pelo empobrecimento. O empobrecimento pode ser inevitável, mas deixem de lhe atribuir qualquer valor catártico e vender como nova propaganda que, no dia em que estivermos mesmo muito pobres, vai começar a nova aurora económica, a ascensão de uma economia de sucesso, livre do Estado, competitiva e dirigida por uma "nova geração" liberal e desempoeirada.»

Sedução do eleitorado

Proposta de estudo sociológico: averiguar que percentagem (masculina e feminina) da população convertida ao discurso da miséria se deixou seduzir literalmente pelos lindos olhos de Passos Coelho.

Agência Rangel

Se Paulo Rangel concretizar a sua agência de emigração, tem cliente. Desde que pague as passagens. (Ou a passagem, sabemos que é só de ida.) Em Vimioso diz que oferecem mil euros a casais que aumentem a população. Não ficaria mal ao Governo (e seria coerente com as suas opções políticas) pagar quantia semelhante a quem se voluntarie para desemparar a loja. Com mil euros há todo um mundo de possibilidades e destinos. O amor à Pátria aumenta na exacta proporção de quanto ela está disposta a pagar para se ver livre de nós.

Mas claro que a Agência Rangel há-de ser mais exactamente uma agência de aventuras, uma coisa que inclua o risco e o revivalismo. Os clientes farão, digamos, um investimento de risco (mas com risco mesmo), embarcando numa aventura old fashioned, como agrada aos conservadores. Rangel talvez tire do museu de cera um guia que nos acompanhe até à raia, mas a fronteira há-de ser passada a salto, os rios cruzados a vau e as distâncias percorridas a calcantes. Tudo brindado a vinho verde, que é do nosso Portugal!

domingo, 25 de dezembro de 2011

Males do couro cabeludo

O rapaz está sentado na cadeira do cabeleireiro. A funcionária, munida de pente e tesoura de dentes, vai desferindo golpes vigorosos. Com exuberância de gestos, levanta compridas repas da cabeleira e ataca-as como se disso dependesse a continuação do mundo. A determinado momento do labor, questiona o cliente:
— Estou a magoar?
O rapaz, com uma expressão torturada no rosto, ombros encolhidos como se tivesse deflagrado uma granada, responde o não mais sim de que K. se lembra.

(A espreitar tão discretamente quanto pode pelo vidro da montra, K. conhece o tormento do rapaz — também foi um dia cliente daquele salão. Houve um tempo em que K. podia recorrer àquele género de serviços, o luxo de um corte de cabelo a doze euros. Lembra-se de como a figura dócil, de prima carinhosa, daquela funcionária escondia uma harpia, que se revelava no momento em que as pessoas tinham o azar de coincidir no seu turno de trabalho. Também K. quis muitas vezes dizer não quando dizia o seu sim educado. Até ao dia em que começou a espreitar pela montra antes de entrar — e a retroceder nos seus passos se estava de serviço tal instrumento da Inquisição.)

Depois o equilíbrio nas forças em conflito altera-se. Acabado o desbaste, a cabeleireira entra nas minudências, e aí o rapaz tem uma palavra a dizer. Há que assegurar determinada proporcionalidade entre a forma como a nuca é rapada e os lados se penteiam para a frente. Um gesto em falso e é a vez da senhorita experimentar a violência do rapaz, patente nos olhares que lança ao espelho e nos monossílabos escandalizados que solta se ela avança por onde não deve.

O penteado de um adolescente é uma problemática que não deve ser abordada de ânimo leve. Nisto, não difere muito a época actual dos tempos de K., talvez apenas na banda sonora. K. teve o seu momento Duran Duran numa altura em que os demais rapazes deixavam crescer cabeleiras à Iron Maiden ou permaneciam nos seus cortes medianos e clássicos de burgueses anódinos ou sucumbiam à escalpelização periódica das famílias mais pobres. Também nessa altura o drama maior de uma vida se relacionava muitas vezes com uma tesoura que progredia em terreno proibido — na adolescência, o tempo que leva a repor uma madeixa é exasperante, tem escala cósmica.   

Agora K. submete-se sempre que há uma máquina disponível à estética militar, a clássica, a do pente zero. Há ameaças antigas que regressaram, piolhos, lêndeas, e quando se anda na rua dispensam-se contratempos extra. Já não estão presentes mães que nos passem com zelo pelos cabelos, acariciando agudamente o crânio, pentes de dentes juntíssimos, que nos desenriçam e livram de parasitas e outros males do couro cabeludo.

A vida de K. (5)

sexta-feira, 23 de dezembro de 2011

Onde está a piada

Exercício interessante: decifrar o tipo de riso que deflagra em cada indivíduo que se confronta com o cartoon anterior. A forma como rimos e as coisas de que nos rimos, o ponto da narrativa onde encontramos a piada — se a encontramos ou consideramos —, também nos definem.