terça-feira, 1 de agosto de 2017
quarta-feira, 26 de julho de 2017
Saiu a LER
Apesar das secções iniciais, onde Francisco José Viegas Pai
e Bruno Vieira Amaral Filho se entretêm, por mera travessura, a assinar os
textos um do outro (ninguém os distingue, de qualquer modo), gosto da LER. Hoje
surpreendeu-me que houvesse gente que já tivesse lido artigos inteiros de um
número que eu nem sonhava que estava para sair. E deitei-me a reflectir. É reconfortante
que exista e sobreviva em Portugal uma revista com um marketing tão inexistente, com uma tal falta de publicidade.
A página de Facebook da LER tem uma foto de capa de Junho
de 2016 e o último post é de 29 de
Março deste ano. No blogue, a última entrada é igualmente de 29 de Março e a
capa é a da edição do Inverno de 2016/2017 (a antepenúltima).
Não se confundam com o tom irónico: fico mesmo contente que
a revista singre deste modo, alheia às «redes sociais» e, de resto, aos media em geral. A não ser que alguém ande a lavar dinheiro com literatura, isto significa que há no
país um conjunto suficiente de amantes de livros que não precisa de ser bojardado
com publicidade para manter o interesse, pagar e garantir a sobrevivência de
uma publicação dedicada ao tema.terça-feira, 18 de julho de 2017
Da democracia do gosto
É fácil invocar o chavão «gostos não se discutem» para
terminar uma conversa (ou, mais rigorosamente, para fazer calar o interlocutor).
Talvez os gostos não se discutam (não se deviam impor, isso sim).
Mas pode-se tentar explicar serena e sabiamente a qualidade e a singularidade de
uma obra de arte, como se faz neste vídeo.
Apelar à difusão do vídeo pode contudo valer-nos a acusação
de proselitismo, porque, como se sabe, o único proselitismo válido, mas não
assumido, é o que praticam com denodo as televisões e a imprensa “popular”.
Claro que nunca veremos a TVI ou a CMTV a substituir um dos
programas do seu circo de horrores por uma aula destas. Mas podemos sempre observar
que, ao contrário do que apregoam, a sua noção de democracia está errada.
A chave da democracia não é fazer cumprir a opção da maioria
(muito menos a opção previamente decidida pelos populistas de serviço). A chave
da democracia é, exactamente, a possibilidade de optar. E isso só se assegura
permitindo a diversidade e a singularidade. O que acontece é que demasiado frequentemente, como
lembra Luís Figueiredo no final do vídeo, «as pessoas não estão a escolher». Como poderiam, não é?
sábado, 24 de junho de 2017
[Prosa sem bússola nem destino]
A cada manhã do Inverno nevoeirento o homem atravessa para o lado das moagens escolhendo a mesma passadeira, das cinco ou seis que ligam a cidade velha ao passeio que ladeia o canal e une as duas pontes. Do lugar à janela em que me instalo para ficar de dentro a ponderar o bulício urbano, vejo-o aproximar-se no seu passo absorto e enfrentar a passadeira finalmente de rosto erguido. Não levanta o rosto para prestar atenção ao trânsito: aos automóveis só dispensa a visão periférica e talvez a audição, os olhos varrem o asfalto zebrado e sobem pela parede do edifício do outro lado da rua, para fixar então a imagem que ali se encontra. Faz toda a travessia da estrada sem desviar o olhar da parede, e no final do percurso, quando já tem os dois pés sobre o passeio oposto, detém-se e demora-se ali todos os sessenta segundos de um bom minuto. É como se pela primeira vez descobrisse a imagem e se interessasse por a decifrar ou como se naquela parede estivesse algo da sua devoção, um ícone a que devesse uma homenagem quotidiana, uma oração, como algumas pessoas de gerações mais velhas ainda fazem diante de pequenas capelas, cruzeiros ou estatuária religiosa distribuída pelas cidades.
Do meu posto não conseguiria dizer se se trata de um mapa, de um cartaz publicitário ou de um painel de azulejos com uma figura de santo, pelo que tive de numa das manhãs sair para o frio e ir eu próprio espreitar. Descobri um banal poster a promover uma linha de lingerie. Um modelo feminino olha-nos daquela parede, não com lubricidade ou malícia, não a convidar-nos a fantasiar episódios eróticos. Não se trata de uma colecção destinada a seduzir os companheiros das mulheres que a comprem, mas de peças íntimas para usar no dia-a-dia, confortáveis e elegantes e, sim, com inevitável sensualidade. A mulher apresenta uma expressão não direi beatífica mas de certo modo misteriosa, melancólica e carismática, a fazer-nos hesitar entre uma alma clandestinamente sofredora ou uma pessoa apenas introspectiva, com o pensamento longe do estúdio onde se deixou fotografar. Na verdade, a mulher não nos olha, antes fixa um ponto aquém de nós — o balanço da sua semana, os planos para depois da sessão fotográfica, a dor ou o motivo da sua melancolia, nunca saberemos o quê. Um cartaz de roupa interior pode ser, por talento ou acaso, a versão contemporânea e igualmente enigmática, embora sem esboço de sorriso, da mais pudenda Mona Lisa.
Primeiro observamos-lhe o olhar, ligeiramente realçado por um risco de lápis, alvitrando razões e motivos para aquela pose ou aquele estado de espírito. Depois descemos pelo pescoço e não temos como evitar os seios, de áurea proporção, sustidos sem necessidade aparente por uma peça de desenho simples e sem rendas. Mais abaixo há uma barriga lisa e uma púbis que pede menos atenção, não por falta de beleza ou semelhante perfeição nas medidas e linhas, mas porque o enquadramento e a luz destacam o rosto e os seios. Ou talvez haja afinal no rosto e nos seios algo menos comum que nos solicita observação detalhada e meditação. Pergunto-me se são estas as questões que afloram o espírito do homem que ali se detém quotidianamente — uma necessidade imperiosa de concluir alguma coisa sobre a modelo da fotografia — ou se ele é apenas um voyeur que se conforta a si mesmo por usar um poster em vez da imagem viva das adolescentes que frequentam a escola do outro lado do canal.
De todos quantos se tenham já apercebido do vício daquele homem, da sua necessidade diária de satisfazer o olhar na esquina antes da ponte, poucos terão talvez a minha propensão para a condescendência. Não vejo motivos para o julgar ou fazer piadas visando o embaraço de alguém que é apanhado a cobiçar um corpo numa fotografia, a sonhar com seios cuja posse lhe parece tão distante quanto a elegância ou a riqueza. Tem uma figura triste e pesada e veste sem a pretensão de atrair por sua vez olhares, não olhares admirativos, em todo o caso. Mas eu estou disposto a dar-lhe a hipótese de uma história pessoal menos evidente, a de alguém que vê na fotografia a imagem de uma ex-amante e a olha todos os dias com inultrapassada perplexidade pelo fim da relação, com mágoa por resolver, nostalgia suave ou saudade dilacerante. As modelos, pelo menos as de pósteres de tiragem recente, não são Giocondas renascentistas com biografia imponderável, têm decerto uma vida e relações sociais e amorosas, maridos ou amantes orgulhosos ou ciumentos que hão-de regularmente cruzar-se com a sua imagem em suportes publicitários de rua e que em algum momento tomarão o seu tempo perante as fotografias a remoer a raiva ou a satisfazer a vaidade. Conheci um tipo que se separou porque não aguentava ver a sua mulher, actriz, contracenando em amplexos amorosos e beijos lânguidos com actores a esmo. Evitava os cinemas e a televisão, mas não podia esconder-se sempre da publicidade de rua, que sendo estática não é menos intrusiva e favorece uma observação mais prolongada.
Do meu posto não conseguiria dizer se se trata de um mapa, de um cartaz publicitário ou de um painel de azulejos com uma figura de santo, pelo que tive de numa das manhãs sair para o frio e ir eu próprio espreitar. Descobri um banal poster a promover uma linha de lingerie. Um modelo feminino olha-nos daquela parede, não com lubricidade ou malícia, não a convidar-nos a fantasiar episódios eróticos. Não se trata de uma colecção destinada a seduzir os companheiros das mulheres que a comprem, mas de peças íntimas para usar no dia-a-dia, confortáveis e elegantes e, sim, com inevitável sensualidade. A mulher apresenta uma expressão não direi beatífica mas de certo modo misteriosa, melancólica e carismática, a fazer-nos hesitar entre uma alma clandestinamente sofredora ou uma pessoa apenas introspectiva, com o pensamento longe do estúdio onde se deixou fotografar. Na verdade, a mulher não nos olha, antes fixa um ponto aquém de nós — o balanço da sua semana, os planos para depois da sessão fotográfica, a dor ou o motivo da sua melancolia, nunca saberemos o quê. Um cartaz de roupa interior pode ser, por talento ou acaso, a versão contemporânea e igualmente enigmática, embora sem esboço de sorriso, da mais pudenda Mona Lisa.
Primeiro observamos-lhe o olhar, ligeiramente realçado por um risco de lápis, alvitrando razões e motivos para aquela pose ou aquele estado de espírito. Depois descemos pelo pescoço e não temos como evitar os seios, de áurea proporção, sustidos sem necessidade aparente por uma peça de desenho simples e sem rendas. Mais abaixo há uma barriga lisa e uma púbis que pede menos atenção, não por falta de beleza ou semelhante perfeição nas medidas e linhas, mas porque o enquadramento e a luz destacam o rosto e os seios. Ou talvez haja afinal no rosto e nos seios algo menos comum que nos solicita observação detalhada e meditação. Pergunto-me se são estas as questões que afloram o espírito do homem que ali se detém quotidianamente — uma necessidade imperiosa de concluir alguma coisa sobre a modelo da fotografia — ou se ele é apenas um voyeur que se conforta a si mesmo por usar um poster em vez da imagem viva das adolescentes que frequentam a escola do outro lado do canal.
De todos quantos se tenham já apercebido do vício daquele homem, da sua necessidade diária de satisfazer o olhar na esquina antes da ponte, poucos terão talvez a minha propensão para a condescendência. Não vejo motivos para o julgar ou fazer piadas visando o embaraço de alguém que é apanhado a cobiçar um corpo numa fotografia, a sonhar com seios cuja posse lhe parece tão distante quanto a elegância ou a riqueza. Tem uma figura triste e pesada e veste sem a pretensão de atrair por sua vez olhares, não olhares admirativos, em todo o caso. Mas eu estou disposto a dar-lhe a hipótese de uma história pessoal menos evidente, a de alguém que vê na fotografia a imagem de uma ex-amante e a olha todos os dias com inultrapassada perplexidade pelo fim da relação, com mágoa por resolver, nostalgia suave ou saudade dilacerante. As modelos, pelo menos as de pósteres de tiragem recente, não são Giocondas renascentistas com biografia imponderável, têm decerto uma vida e relações sociais e amorosas, maridos ou amantes orgulhosos ou ciumentos que hão-de regularmente cruzar-se com a sua imagem em suportes publicitários de rua e que em algum momento tomarão o seu tempo perante as fotografias a remoer a raiva ou a satisfazer a vaidade. Conheci um tipo que se separou porque não aguentava ver a sua mulher, actriz, contracenando em amplexos amorosos e beijos lânguidos com actores a esmo. Evitava os cinemas e a televisão, mas não podia esconder-se sempre da publicidade de rua, que sendo estática não é menos intrusiva e favorece uma observação mais prolongada.
segunda-feira, 22 de maio de 2017
O abcesso da manhã
quarta-feira, 10 de maio de 2017
A salvação é possível, irmãos!
Apesar do nome, Salvador Sobral não vem redimir anos de
indigência televisiva. Mas, ah, sabe bem esta pausa na nacional e proverbial
pimbalhice! A estratégia de Nuno Artur Silva (de que já aqui falei) foi recompensada
e veio relembrar a condescendência, a indiferença, o niilismo ou a cobardia de
sucessivas direcções editoriais das televisões, pública e privadas. Sim, a
popularidade é possível por outras vias.
A ironia de sempre é que as televisões são por natureza máquinas de popularizar e, quando, inseguras,
incompetentes ou cínicas, baixam a sua bitola ao nível da miséria intelectual,
popularizam lixo. Décadas de irresponsabilidade institucional fizerem crer que a
única forma de comunicar esteticamente com as massas era através da mediocracia
artística. Mas eis que o país, um país maior do que as habituais bolsas de
resistência cultural, se mostra capaz de apreciar e amar uma boa canção, mais devedora
ao jazz do que à fórmula habitual de encher as insuportáveis e itinerantes chouriças
de sábados e domingos à tarde.
Ainda não será desta que as populações se revoltam contra a
imagem que a televisão faz delas, mas talvez fique um pouco mais evidente que
aquela imagem é, antes de mais, o espelho de quem faz televisão.
sexta-feira, 5 de maio de 2017
«Todo o verso é um romance inacabado»
A primeira mesa do FLiD - Festival Literário Douro tinha como mote «Todo o verso é um
romance inacabado». Tentei não dizer demasiadas banalidades:
Dantes, quando tinha tempo e disposição, escrevia pequenas
narrativas a propósito de quase nada. Um objecto esquecido num balouço, uma
boneca sem braços, a passagem furtiva de um animal, o olhar de alguém que se
cruzava com o meu, uma cena de namorados brevemente entrevista, uma criança
pela mão do avô, a manobra de um carro, o título de uma notícia, o caminhar de
uma pessoa, um gesto, uma atitude, uma expressão, frases ou breves trechos de
conversas que discreta mas indelicadamente ouvia.
Estas coisas não serão exactamente versos, mas, do pouco que
sei de poesia, parecem-me suas familiares, têm a mesma concisão, encerram igual
miríade de histórias ou emoções, colhem, como os versos, porções de existências
que nós, espectadores, apanhamos a meio do seu decurso e para as quais podemos
imaginar múltiplas hipóteses de desenlace e múltiplas causas prováveis.
Um gesto, um som, um cheiro, uma frase eram o suficiente
para eu imaginar uma história, personagens, relações entre elas. Aqueles
pequenos nadas que me inspiravam eram pedaços da natureza ou de vidas alheias
fixados como numa fotografia ou num excerto de filme. Poderiam ser partes de
romances, se fossem literatura, e, na sua exiguidade narrativa, seriam romances
inacabados, tanto porque apenas
indiciavam a intriga como porque ainda estavam a decorrer.
Julgo que a poesia recolhe pedaços destes, em estrofes de
menor ou maior dimensão, mas, ao invés do romance, não procura geralmente contar
a história a que eles pertencem ou que evocam. É um exercício diferente, se
calhar contrário ao romance. Possivelmente parte da mesma observação do mundo,
mas limita-se a registar o fenómeno, a encontrar as palavras certas, precisas,
para o representar em toda a sua amplitude semântica e em toda a inconcretude,
de modo a fornecer ao leitor um conjunto de emoções, de sentimentos estéticos,
de possibilidades de sentido, mas preservando o enigma, o mistério, a
indefinição — a inconclusão,
precisamente.
Não que o romance, nas suas variadas formas e intenções, não
se permita igualmente deixar tudo em aberto, tudo por explicar, tudo por
contar, mas fá-lo espraiando-se pelas páginas, relatando factos e acções,
enchendo parágrafos de episódios, descrições, personagens e diálogos,
acumulando reflexões.
Imagino os versos — do mesmo modo que os fenómenos naturais
ou sociais que inspiravam os meus pequenos textos — como espoletadores de
memória ou imaginação. Uma imagem, um cheiro, um som, um toque têm o condão de activar
lembranças e emoções a elas associadas. Por vezes não chegam a despertar a
lembrança em si mesma, mas apenas a emoção, e até uma emoção sem biografia. O
nosso humor, o nosso estado de espírito podem ser mudados por uma imagem, um
som, um cheiro, um toque sem que sejamos capazes de compreender a razão por que
mudaram, ou sem que precisemos de
compreender a razão.
O romance reage a estas espoletas a maior parte das vezes
procurando vasculhar na memória pessoal do autor histórias a que pertenceram fenómenos
equivalentes e que aguardavam serem narradas, ou despertando a sua imaginação
para possibilidades de dramatização especulativa dos mesmos fenómenos.
O romance quer pôr em cena. O verso procura talvez ser
apenas a imagem, o som, o cheiro, o toque. Ambiciona o mesmo poder de síntese
extrema, a mesma eficácia de mola emocional. O verso é a espoleta. Não precisa
de contar como ou por que se deu a rejeição, por exemplo, para que o leitor
sinta a frustração e a tristeza do amante rejeitado. Não necessita de descrever
como era bela a vida noutro tempo ou noutra terra para que a saudade venha à
tona no espírito de quem lê.
O verso é talvez símbolo, ideograma, representação sensitiva
e abstracta. O romance, pelo seu lado, desenvolve a ideia, tentando compreendê-la
com um certo grau de racionalidade, mais ou menos materialista, mais ou menos conceptual.
E nos melhores casos falha. Quando se aproxima suficientemente da vida, da sua
complexidade, da sua ambiguidade, das suas contradições e do seu absurdo, o
romance não pode concluir-se, mesmo que grafe a palavra “fim” na última página.
A existência não cabe num romance; nenhuma vida em particular cabe num romance.
Pelo que também todo o romance é na verdade um romance inacabado.
De resto, haveria alguma diferença se Kafka tivesse concluído
O Processo ou O Castelo?
4/5/2017
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