A primeira mesa do FLiD - Festival Literário Douro tinha como mote «Todo o verso é um
romance inacabado». Tentei não dizer demasiadas banalidades:
Dantes, quando tinha tempo e disposição, escrevia pequenas
narrativas a propósito de quase nada. Um objecto esquecido num balouço, uma
boneca sem braços, a passagem furtiva de um animal, o olhar de alguém que se
cruzava com o meu, uma cena de namorados brevemente entrevista, uma criança
pela mão do avô, a manobra de um carro, o título de uma notícia, o caminhar de
uma pessoa, um gesto, uma atitude, uma expressão, frases ou breves trechos de
conversas que discreta mas indelicadamente ouvia.
Estas coisas não serão exactamente versos, mas, do pouco que
sei de poesia, parecem-me suas familiares, têm a mesma concisão, encerram igual
miríade de histórias ou emoções, colhem, como os versos, porções de existências
que nós, espectadores, apanhamos a meio do seu decurso e para as quais podemos
imaginar múltiplas hipóteses de desenlace e múltiplas causas prováveis.
Um gesto, um som, um cheiro, uma frase eram o suficiente
para eu imaginar uma história, personagens, relações entre elas. Aqueles
pequenos nadas que me inspiravam eram pedaços da natureza ou de vidas alheias
fixados como numa fotografia ou num excerto de filme. Poderiam ser partes de
romances, se fossem literatura, e, na sua exiguidade narrativa, seriam romances
inacabados, tanto porque apenas
indiciavam a intriga como porque ainda estavam a decorrer.
Julgo que a poesia recolhe pedaços destes, em estrofes de
menor ou maior dimensão, mas, ao invés do romance, não procura geralmente contar
a história a que eles pertencem ou que evocam. É um exercício diferente, se
calhar contrário ao romance. Possivelmente parte da mesma observação do mundo,
mas limita-se a registar o fenómeno, a encontrar as palavras certas, precisas,
para o representar em toda a sua amplitude semântica e em toda a inconcretude,
de modo a fornecer ao leitor um conjunto de emoções, de sentimentos estéticos,
de possibilidades de sentido, mas preservando o enigma, o mistério, a
indefinição — a inconclusão,
precisamente.
Não que o romance, nas suas variadas formas e intenções, não
se permita igualmente deixar tudo em aberto, tudo por explicar, tudo por
contar, mas fá-lo espraiando-se pelas páginas, relatando factos e acções,
enchendo parágrafos de episódios, descrições, personagens e diálogos,
acumulando reflexões.
Imagino os versos — do mesmo modo que os fenómenos naturais
ou sociais que inspiravam os meus pequenos textos — como espoletadores de
memória ou imaginação. Uma imagem, um cheiro, um som, um toque têm o condão de activar
lembranças e emoções a elas associadas. Por vezes não chegam a despertar a
lembrança em si mesma, mas apenas a emoção, e até uma emoção sem biografia. O
nosso humor, o nosso estado de espírito podem ser mudados por uma imagem, um
som, um cheiro, um toque sem que sejamos capazes de compreender a razão por que
mudaram, ou sem que precisemos de
compreender a razão.
O romance reage a estas espoletas a maior parte das vezes
procurando vasculhar na memória pessoal do autor histórias a que pertenceram fenómenos
equivalentes e que aguardavam serem narradas, ou despertando a sua imaginação
para possibilidades de dramatização especulativa dos mesmos fenómenos.
O romance quer pôr em cena. O verso procura talvez ser
apenas a imagem, o som, o cheiro, o toque. Ambiciona o mesmo poder de síntese
extrema, a mesma eficácia de mola emocional. O verso é a espoleta. Não precisa
de contar como ou por que se deu a rejeição, por exemplo, para que o leitor
sinta a frustração e a tristeza do amante rejeitado. Não necessita de descrever
como era bela a vida noutro tempo ou noutra terra para que a saudade venha à
tona no espírito de quem lê.
O verso é talvez símbolo, ideograma, representação sensitiva
e abstracta. O romance, pelo seu lado, desenvolve a ideia, tentando compreendê-la
com um certo grau de racionalidade, mais ou menos materialista, mais ou menos conceptual.
E nos melhores casos falha. Quando se aproxima suficientemente da vida, da sua
complexidade, da sua ambiguidade, das suas contradições e do seu absurdo, o
romance não pode concluir-se, mesmo que grafe a palavra “fim” na última página.
A existência não cabe num romance; nenhuma vida em particular cabe num romance.
Pelo que também todo o romance é na verdade um romance inacabado.
De resto, haveria alguma diferença se Kafka tivesse concluído
O Processo ou O Castelo?
4/5/2017
Sim, acho que é mais ou menos isso.
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