terça-feira, 1 de novembro de 2022

O senhor Palomar e o amor sáfico

Vêm de mãos dadas e ele, em passo de jogging, capta-lhes na distância um semblante que hesita em definir como semi-erguido em desafio ou meio abatido de embaraço. À medida que se aproximam, pergunta-se, com ligeiro desassossego: vincam com ousadia a sinceridade dos dedos entrelaçados ou preparam-se para baixar os rostos acossados?

A consciência da situação faz com que a dúvida se vire depois para si próprio e então hesita entre olhar brevemente com naturalidade ou desviar os olhos sem demora. Se optar pela primeira hipótese, será convincente a sua lhaneza, não se sentirão as moças objecto de curiosidade circense ou censura arrogante? Por outro lado, se escolher deixar de olhar agora, com pudor e respeito pela intimidade alheia, não pensarão que ele o faz precipitadamente por indignação ou nojo?

O dilema é resolvido pela intervenção de uma força de outra natureza: vence a curiosidade literária, que o incita a procurar sem rebuço nem mandado personagens em todos os transeuntes. Flanqueia-as a olhá-las com esbaforido olhar clínico, imaginando-as na mesa do anatomista, não se dando conta de que, desta vez, no hiato onde ocorrem os dilemas absurdos, é ele a personagem.

2 comentários:

  1. "A consciência da situação faz com que a dúvida se vire depois para si próprio e então hesita entre olhar brevemente com naturalidade ou desviar os olhos sem demora." Como o abismo? Saio da consciência e entro em mim com frequência, já foi mais feio, já é mais calmo... Agradável? Não. Mas prefiro a certeza. Gostei muito do que escreve

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