terça-feira, 30 de abril de 2019

Eppur si muove: alguns polípticos

Apesar das negras profecias em auto-realização mencionadas no post anterior, continua a haver, por entre toda a futilidade impressa, um número muito simpático de edições que nos salvam os dias.
Ainda há pouco tempo era fácil encontrar, por exemplo, numa mesma livraria, os sete volumes de Em Busca do Tempo Perdido, na nova tradução de Pedro Tamen, e os cinco* de A Minha Luta, de Karl Ove Knausgård, a quem chamaram o Proust escandinavo ou o Proust do século XXI.
Alguns dos profetas do fim da literatura virão naturalmente defender que é já uma infâmia mencionar aquelas duas obras numa mesma frase quanto mais falar de Proust a propósito do norueguês.
A questão sobre se é legítimo invocar o autor de Em Busca do Tempo Perdido a propósito dos livros de Knausgård é um pouco ociosa, tanto mais que, depois de Proust, todo o exercício retrospectivo em literatura se tornou de uma forma ou doutra proustiano. De resto, a legitimidade a debater em A Minha Luta é mais do domínio da ética social do que da literatura. O valor literário de Knausgård é evidente para quem o leia sem juízos prévios. Eu discutiria antes a necessidade, para mim escusada, de o seu políptico ter sido editado como puramente autobiográfico. Não pelo que o autor conta da sua vida, mas pelo que expõe da de alguns familiares ou conhecidos.
Em literatura é válida a suspeita de que todo o livro tem algo de autobiográfico. Mas a tecelagem que a ficção elabora com o material biográfico resulta numa coisa nova, que foca o interesse do leitor, em termos de narrativa, no construído e não no factual, na obra de arte como um universo próprio, singular, que não depende do nosso para ser, embora possa ter dependido dele para nascer.
Não impede isto que um livro de ficção seja em simultâneo um fresco de uma época ou de uma cultura, de uma geração ou de uma geografia. Não lemos a distopia 1984 sem pensar no estalinismo (ou nos próximos totalitarismos). Os volumes de Knausgård dispensavam o rótulo de autobiográficos-sem-filtros para serem boa literatura. Talvez vendessem menos numa primeira fase, sem a polémica (a que se somou a do título), mas não teriam menos interesse. E deixariam um leitor como eu menos constrangido.
De dois outros polípticos admiráveis que a literatura contemporânea produziu se pode igualmente dizer que são em maior ou menor grau autobiográficos, num caso com a ajuda do próprio autor, no outro apenas conjecturando isso, como quase sempre podemos fazer se não tivermos nada melhor em que ocupar a mente. Refiro-me à série sobre Patrick Melrose, de Edward St Aubyn, e à tetralogia A Amiga Genial, de Elena Ferrante.
Os livros de St Aubyn são apresentados como semi-autobiográficos e isso é suficiente para nos proteger de remorsos quanto a um voyeurismo descarado, porque é suficiente para proteger a privacidade das pessoas que se relacionaram com o autor: nada, a não ser as declarações de Edward, nos autoriza a escolher que partes são factuais e que partes são pura invenção. Na incerteza criada pelo prefixo semi acolhe-se a intimidade das pessoas que inspiraram as personagens.
No caso de Ferrante, li poucas referências a que se trate de material autobiográfico e, em todo o caso, tal é supérfluo, uma vez que a autora permanece oficialmente desconhecida. Por outro lado, as especulações mais acreditadas sobre a identidade de Ferrante referem-se a pessoas biograficamente diferentes das protagonistas da tetralogia.
Mas se falei em autobiografia a propósito de A Amiga Genial foi apenas para poder integrar a obra neste texto, porque não são o detalhe intimista e o forte carisma com que Lila e Lenù foram desenhadas que nos permitem declará-las pessoas vivas, embora nos permitam integrá-las na galeria de grandes personagens da literatura universal.
O que têm em comum estes três polípticos, oriundos de diferentes geografias e tradições, adoptando diferentes formas narrativas e estilísticas, é a qualidade literária. Nenhum deles dispensa a leitura de Proust, Waugh, Dickens ou Goethe, para citar genealogias possíveis, mas só no sentido em que é uma pena um leitor não ter uma visão alargada e retrospectiva do cânone literário, porque qualquer deles tem lugar nesse mesmo cânone por mérito próprio. 


* Em Portugal falta editar o sexto volume.

sábado, 27 de abril de 2019

Profetas do fim do livro

De entre os vários tipos de catastrofistas em relação ao futuro dos livros, é justo destacar três. O primeiro tipo é constituído por sujeitos que, ao atingirem uma determinada idade ou por terem coleccionado um certo número de lombadas, afirmam já terem lido tudo o que de bom a literatura poderia dar à humanidade. Alguns, com maior ou menor grau de franqueza consigo próprios, sugerem que, passe a imodéstia, até contribuíram para essa dádiva. Não há já nada que se possa escrever que ainda não tenha sido escrito, asseguram, não há já nada a descobrir na literatura. O que não confessam a si mesmos, a não ser talvez se expostos aos métodos de Guantánamo, é que lançam o anátema sobre o futuro dos livros por ressentimento, por receio de sombra, porque, compreensivelmente, o mundo já não lhes interessa, ou, suponho, para cumprirem, paternalistas, o que se espera de todos nós a partir de certa altura, desdenhando os novos textos como desdenhamos a música feita pelas novas gerações.
O segundo tipo de bandarras do fim dos livros são cidadãos ou cidadãs de extracção assaz comum mas que a televisão, a propósito de nada, arvorou em vedetas e que, consequentemente, inelutavelmente, tragicamente, escrevem e publicam. Estes em geral não anunciam o fim do livro em si mesmo, porque pretendem eles próprios cometer mais algumas edições, mas o fim da literatura, essa disciplina inútil. Valem-se da estatística e de uma versão muito particular de democracia: a maior parte das pessoas, dizem, já não tem disposição para ler livros como antigamente, chatíssimos e intrincados, indecifráveis, sem propósito; o que agora interessa são as biografias e as inconfidências dos assim chamados vips, o seu pensamento, na hipótese indemonstrada de terem um. Fazem por isso do mundo editorial um circo de horrores, com o diligente contributo de supermercados e grupos de livrarias.
Um terceiro tipo de pregadores do armagedom vem geralmente da área das novas tecnologias ou das novas tendências, seja lá isso o que for. São informáticos ou designers, publicitários ou ted talkers, gurus ou por vezes meros contadores de anedotas (vulgo, stand up comedians). O problema para os que se integram neste tipo não é propriamente o livro, que não lêem, mas a velhice dele, o seu carisma démodé, o seu arcaísmo. A verdade é que, mesmo quando transposto para suportes digitais, com hiperlinks e vídeos a pular a cada linha, um livro, se lido com certa atenção do início ao fim, implica uma postura profundamente anti-moderna: estática, concentrada, silenciosa, individualista, alheia ao ruminar da manada e aos fluxos sociais. A leitura de livros, se levada a sério, utiliza ferramentas pior do que analógicas, como a memória, a imaginação, a inteligência, a sensibilidade, implicando a vontade de compreender e de visualizar autonomamente o que é sugerido pelo autor, ignorando as fotos ou vídeos auxiliares, os templates interactivos e os grafismos apelativos, e, no acto, desinteressando-se profundamente, ou rechaçando mesmo, ó desfaçatez!, as intervenções do personal coach, e dispensando o riso geral do rebanho, até porque, ó reaccionarismo!, nem sempre os livros têm como resultado gargalhadas — e as modernas profissões de visionários abominam o que não é para riso, riso fácil.
O problema dos que estimam os livros e os acham indispensáveis é que espécimes destes três tipos de nostradamus em cuecas estão nos conselhos de administração dos grupos económicos e editorais, são os CEOs, os pivots e  os bibelots mais bem pagos das televisões, estão na política, legislam, discursam na assembleia, são enviados engravatadamente para o parlamento europeu, dirigem organismos públicos, constituem a coluna dorsal das juventudes partidárias que fazem o arco e a flecha da governação, estão nas direcções escolares e académicas e não raro nas bibliotecas públicas e no Ministério da Educação, propagam-se como uma arma biológica inoculada por um poder sinistro, como o vírus da mediocridade replicando-se a si mesmo.

O fim do livro — que será também o fim da civilização, se me permitem a minha própria profecia — é assim sobretudo uma forma colectivista de wishful thinking à qual foram dados todos os meios para realizar os seus próprios desejos travestidos de previsões. Como se órgãos vitais de um organismo conspirassem alegremente para o haraquiri do portador. E não, claro, por razões de honra, mas apenas por vilania ou infantilismo de carácter.

(Eppur si muove.)

quarta-feira, 3 de abril de 2019

Quando eu morava ali

«Quando eu morava ali não sentia grande curiosidade por aves (e suponho que seriam então mais abundantes), mas não julgo que recebêssemos com frequência visitas de garças-reais, se as recebíamos de todo. Aquele mundo era mais campestre do que o que o veio substituir, mas era paradoxalmente mais habitado, com bulício humano junto ao lago, mesmo num crepúsculo cinzento e chuvoso de Dezembro como o que acolheu o meu regresso. Eu era agora outra mulher, capaz de me deter a olhar uma paisagem e de reparar no que nela havia de raro ou peculiar, e uma garça-real de pé junto à água, iluminada por um candeeiro muito mais antigo na terra do que a sua espécie, parecia-me algo de inusitado em qualquer sítio que a visse — ali adquiria foros de aparição. Ela deu pela minha presença quando cheguei a uns trinta metros de distância da margem e pôs-se de lado, a espreitar-me os movimentos pelo canto do olho, com o pescoço desenhando aquela silhueta característica em ponto de interrogação. Pareceu-me adequada a sua postura: assinalava graficamente as suas dúvidas quanto às minhas intenções e, num sentido mais lato, as minhas próprias dúvidas quanto aos meus objectivos. Não fugiu quando, num gesto de mecânica contemporaneidade, tirei o telemóvel da bolsa para a fotografar. O flash iluminou impotentemente a noite que se instalara e eu percebi que era inútil, estava demasiado longe e não havia luz suficiente para a câmara, apenas os arbustos perto de mim sairiam visíveis na foto. Tudo o que colheria daquele primeiro momento era uma impressão que não poderia provar, a somar-se às outras que transportava comigo em igual condição havia três décadas.
Depois de alguns minutos a olharmo-nos, senti-me autorizada a avançar, confiante em que a garça teria decifrado as minhas intenções pacíficas. Estava enganada. A bicha abriu lentamente as asas, segura no seu cálculo das distâncias (não a alcançaria nem que corresse), deu um passo gracioso em frente e elevou-se nos ares com uma pequena rabanada de vento.
Ocupei o seu lugar na beira da água, tentando ver o lago e as redondezas pelos olhos de um frequentador recente, mas faltava ao meu olhar virgindade: tudo ali, o que havia e o que já não estava, tinha impressionado a minha retina há muito, como a luz que fixamos demasiado tempo e continuamos a ver mesmo depois de fecharmos os olhos. Os candeeiros públicos poderiam desligar-se — como tantas vezes acontecia nos Invernos da adolescência — que eu continuaria a poder ver através da escuridão, nem que fossem os espectros a cujo apelo acorrera.
Passaram mais alguns minutos e a garça regressou, sobrevoando com um gazear irritado a pequena enseada. O seu jantar ficara decerto a meio e queria por isso que eu fosse embora, lhe devolvesse o território de caça. Não lhe disputei o direito a estar ali, já não era uma prerrogativa minha. Afastei-me a deambular, voltando-me de vez em quando com um desejo melancólico de beleza selvagem e inconsciente, talvez tentando aprender com ela como reocupar um terreno de onde fomos desalojados.»

[Início de uma novela ou romance em gestação lenta, lentíssima]