De entre os vários tipos de catastrofistas em relação
ao futuro dos livros, é justo destacar três. O primeiro tipo é constituído por
sujeitos que, ao atingirem uma determinada idade ou por terem coleccionado um
certo número de lombadas, afirmam já terem lido tudo o que de bom a literatura
poderia dar à humanidade. Alguns, com maior ou menor grau de franqueza consigo
próprios, sugerem que, passe a imodéstia, até contribuíram para essa dádiva. Não
há já nada que se possa escrever que ainda não tenha sido escrito, asseguram, não
há já nada a descobrir na literatura. O que não confessam a si mesmos, a não
ser talvez se expostos aos métodos de Guantánamo, é que lançam o anátema sobre
o futuro dos livros por ressentimento, por receio de sombra, porque,
compreensivelmente, o mundo já não lhes interessa, ou, suponho, para cumprirem,
paternalistas, o que se espera de todos nós a partir de certa altura, desdenhando
os novos textos como desdenhamos a música feita pelas novas gerações.
O segundo tipo de bandarras do fim dos livros são cidadãos
ou cidadãs de extracção assaz comum mas que a televisão, a propósito de nada, arvorou
em vedetas e que, consequentemente, inelutavelmente, tragicamente, escrevem e
publicam. Estes em geral não anunciam o fim do livro em si mesmo, porque
pretendem eles próprios cometer mais algumas edições, mas o fim da literatura, essa disciplina inútil.
Valem-se da estatística e de uma versão muito particular de democracia: a maior
parte das pessoas, dizem, já não tem disposição para ler livros como
antigamente, chatíssimos e intrincados, indecifráveis, sem propósito; o que
agora interessa são as biografias e as inconfidências dos assim chamados vips,
o seu pensamento, na hipótese indemonstrada de terem um. Fazem por isso do
mundo editorial um circo de horrores, com o diligente contributo de
supermercados e grupos de livrarias.
Um terceiro tipo de pregadores do armagedom vem geralmente da área das
novas tecnologias ou das novas tendências, seja lá isso o que for. São
informáticos ou designers,
publicitários ou ted talkers, gurus
ou por vezes meros contadores de anedotas (vulgo, stand up comedians). O problema para os que se integram neste tipo
não é propriamente o livro, que não lêem, mas a velhice dele, o seu carisma démodé, o seu arcaísmo. A verdade é que,
mesmo quando transposto para suportes digitais, com hiperlinks e vídeos a pular a cada linha, um livro, se lido com
certa atenção do início ao fim, implica uma postura profundamente anti-moderna:
estática, concentrada, silenciosa, individualista, alheia ao ruminar da manada e
aos fluxos sociais. A leitura de livros, se levada a sério, utiliza ferramentas
pior do que analógicas, como a memória, a imaginação, a inteligência, a
sensibilidade, implicando a vontade de compreender e de visualizar autonomamente
o que é sugerido pelo autor, ignorando as fotos ou vídeos auxiliares, os templates
interactivos e os grafismos apelativos, e, no acto, desinteressando-se
profundamente, ou rechaçando mesmo, ó desfaçatez!, as intervenções do personal coach, e dispensando o riso
geral do rebanho, até porque, ó reaccionarismo!, nem sempre os livros têm como
resultado gargalhadas — e as modernas profissões de visionários abominam o que
não é para riso, riso fácil.
O problema dos que estimam os livros e os acham
indispensáveis é que espécimes destes três tipos de nostradamus em cuecas estão nos
conselhos de administração dos grupos económicos e editorais, são os CEOs, os pivots e os bibelots mais bem pagos das televisões, estão na política,
legislam, discursam na assembleia, são enviados engravatadamente para o
parlamento europeu, dirigem organismos públicos, constituem a coluna dorsal das
juventudes partidárias que fazem o arco e a flecha da governação, estão nas direcções
escolares e académicas e não raro nas bibliotecas públicas e no Ministério da
Educação, propagam-se como uma arma biológica inoculada por um poder sinistro, como
o vírus da mediocridade replicando-se a si mesmo.
O fim do livro — que será também o fim da
civilização, se me permitem a minha própria profecia — é assim sobretudo uma
forma colectivista de wishful thinking
à qual foram dados todos os meios para realizar os seus próprios desejos
travestidos de previsões. Como se órgãos vitais de um organismo conspirassem alegremente
para o haraquiri do portador. E não, claro, por razões de honra, mas apenas por vilania
ou infantilismo de carácter.
(Eppur si muove.)
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