sábado, 27 de abril de 2019

Profetas do fim do livro

De entre os vários tipos de catastrofistas em relação ao futuro dos livros, é justo destacar três. O primeiro tipo é constituído por sujeitos que, ao atingirem uma determinada idade ou por terem coleccionado um certo número de lombadas, afirmam já terem lido tudo o que de bom a literatura poderia dar à humanidade. Alguns, com maior ou menor grau de franqueza consigo próprios, sugerem que, passe a imodéstia, até contribuíram para essa dádiva. Não há já nada que se possa escrever que ainda não tenha sido escrito, asseguram, não há já nada a descobrir na literatura. O que não confessam a si mesmos, a não ser talvez se expostos aos métodos de Guantánamo, é que lançam o anátema sobre o futuro dos livros por ressentimento, por receio de sombra, porque, compreensivelmente, o mundo já não lhes interessa, ou, suponho, para cumprirem, paternalistas, o que se espera de todos nós a partir de certa altura, desdenhando os novos textos como desdenhamos a música feita pelas novas gerações.
O segundo tipo de bandarras do fim dos livros são cidadãos ou cidadãs de extracção assaz comum mas que a televisão, a propósito de nada, arvorou em vedetas e que, consequentemente, inelutavelmente, tragicamente, escrevem e publicam. Estes em geral não anunciam o fim do livro em si mesmo, porque pretendem eles próprios cometer mais algumas edições, mas o fim da literatura, essa disciplina inútil. Valem-se da estatística e de uma versão muito particular de democracia: a maior parte das pessoas, dizem, já não tem disposição para ler livros como antigamente, chatíssimos e intrincados, indecifráveis, sem propósito; o que agora interessa são as biografias e as inconfidências dos assim chamados vips, o seu pensamento, na hipótese indemonstrada de terem um. Fazem por isso do mundo editorial um circo de horrores, com o diligente contributo de supermercados e grupos de livrarias.
Um terceiro tipo de pregadores do armagedom vem geralmente da área das novas tecnologias ou das novas tendências, seja lá isso o que for. São informáticos ou designers, publicitários ou ted talkers, gurus ou por vezes meros contadores de anedotas (vulgo, stand up comedians). O problema para os que se integram neste tipo não é propriamente o livro, que não lêem, mas a velhice dele, o seu carisma démodé, o seu arcaísmo. A verdade é que, mesmo quando transposto para suportes digitais, com hiperlinks e vídeos a pular a cada linha, um livro, se lido com certa atenção do início ao fim, implica uma postura profundamente anti-moderna: estática, concentrada, silenciosa, individualista, alheia ao ruminar da manada e aos fluxos sociais. A leitura de livros, se levada a sério, utiliza ferramentas pior do que analógicas, como a memória, a imaginação, a inteligência, a sensibilidade, implicando a vontade de compreender e de visualizar autonomamente o que é sugerido pelo autor, ignorando as fotos ou vídeos auxiliares, os templates interactivos e os grafismos apelativos, e, no acto, desinteressando-se profundamente, ou rechaçando mesmo, ó desfaçatez!, as intervenções do personal coach, e dispensando o riso geral do rebanho, até porque, ó reaccionarismo!, nem sempre os livros têm como resultado gargalhadas — e as modernas profissões de visionários abominam o que não é para riso, riso fácil.
O problema dos que estimam os livros e os acham indispensáveis é que espécimes destes três tipos de nostradamus em cuecas estão nos conselhos de administração dos grupos económicos e editorais, são os CEOs, os pivots e  os bibelots mais bem pagos das televisões, estão na política, legislam, discursam na assembleia, são enviados engravatadamente para o parlamento europeu, dirigem organismos públicos, constituem a coluna dorsal das juventudes partidárias que fazem o arco e a flecha da governação, estão nas direcções escolares e académicas e não raro nas bibliotecas públicas e no Ministério da Educação, propagam-se como uma arma biológica inoculada por um poder sinistro, como o vírus da mediocridade replicando-se a si mesmo.

O fim do livro — que será também o fim da civilização, se me permitem a minha própria profecia — é assim sobretudo uma forma colectivista de wishful thinking à qual foram dados todos os meios para realizar os seus próprios desejos travestidos de previsões. Como se órgãos vitais de um organismo conspirassem alegremente para o haraquiri do portador. E não, claro, por razões de honra, mas apenas por vilania ou infantilismo de carácter.

(Eppur si muove.)

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