«Quando eu morava
ali não sentia grande curiosidade por aves (e suponho que seriam então mais
abundantes), mas não julgo que recebêssemos com frequência visitas de
garças-reais, se as recebíamos de todo. Aquele mundo era mais campestre do que
o que o veio substituir, mas era paradoxalmente mais habitado, com bulício humano
junto ao lago, mesmo num crepúsculo cinzento e chuvoso de Dezembro como o que
acolheu o meu regresso. Eu era agora outra mulher, capaz de me deter a olhar
uma paisagem e de reparar no que nela havia de raro ou peculiar, e uma
garça-real de pé junto à água, iluminada por um candeeiro muito mais antigo na
terra do que a sua espécie, parecia-me algo de inusitado em qualquer sítio que
a visse — ali adquiria foros de aparição. Ela deu pela minha presença quando
cheguei a uns trinta metros de distância da margem e pôs-se de lado, a
espreitar-me os movimentos pelo canto do olho, com o pescoço desenhando aquela
silhueta característica em ponto de interrogação. Pareceu-me adequada a sua
postura: assinalava graficamente as suas dúvidas quanto às minhas intenções e,
num sentido mais lato, as minhas próprias dúvidas quanto aos meus objectivos.
Não fugiu quando, num gesto de mecânica contemporaneidade, tirei o telemóvel da
bolsa para a fotografar. O flash
iluminou impotentemente a noite que se instalara e eu percebi que era inútil, estava demasiado longe e não
havia luz suficiente para a câmara, apenas os arbustos perto de mim sairiam visíveis na foto.
Tudo o que colheria daquele primeiro momento era uma impressão que não poderia
provar, a somar-se às outras que transportava comigo em igual condição havia três
décadas.
Depois de alguns
minutos a olharmo-nos, senti-me autorizada a avançar, confiante em que a garça
teria decifrado as minhas intenções pacíficas. Estava enganada. A bicha abriu
lentamente as asas, segura no seu cálculo das distâncias (não a alcançaria nem
que corresse), deu um passo gracioso em frente e elevou-se nos ares com uma
pequena rabanada de vento.
Ocupei o seu
lugar na beira da água, tentando ver o lago e as redondezas pelos olhos de um
frequentador recente, mas faltava ao meu olhar virgindade: tudo ali, o que
havia e o que já não estava, tinha impressionado a minha retina há muito, como a
luz que fixamos demasiado tempo e continuamos a ver mesmo depois de fecharmos
os olhos. Os candeeiros públicos poderiam desligar-se — como tantas vezes
acontecia nos Invernos da adolescência — que eu continuaria a poder ver através
da escuridão, nem que fossem os espectros a cujo apelo acorrera.
Passaram mais
alguns minutos e a garça regressou, sobrevoando com um gazear irritado a
pequena enseada. O seu jantar ficara decerto a meio e queria por isso que eu
fosse embora, lhe devolvesse o território de caça. Não lhe disputei o direito a
estar ali, já não era uma prerrogativa minha. Afastei-me a deambular,
voltando-me de vez em quando com um desejo melancólico de beleza selvagem e
inconsciente, talvez tentando aprender com ela como reocupar um terreno de onde
fomos desalojados.»
[Início de uma novela ou romance em gestação lenta, lentíssima]
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