O Ave-Rara teve mais profissões do que anos de vida. Uma boa parte delas exerceu-as ao volante, em múltiplas variações de motorista, com uma almofada sobre o banco para que a sua estatura de minorca o não impedisse de conduzir o próprio destino. Foi, por exemplo, condutor de camionetas de gado, transportando vacas das belas e mansas propriedades do planalto para o matadouro decrépito, sujo, impiedoso e talvez ilegal que funcionava nos arrabaldes da cidade. Fazia essas viagens com a mesma jovialidade brejeira com que, anos mais tarde, levava ao centro de saúde velhos dos bairros sociais no seu táxi a cair de podre, quase os matando de riso quando, provocatório, lhes dizia exigir pagamento adiantado não fosse dar-se o caso de lhe morrerem a meio da viagem ou quando, uma semana depois, se mostrava teatralmente surpreendido por os ver ainda vivos, em mais uma ida na sua opinião já inútil ao médico. Muitos daqueles velhos e velhas, devidamente maquilhados e quem sabe agradecidos pelas viagens anteriores, foram depois por ele de novo transportados, então ao volante do carro funerário que aceitou conduzir em part-time, não parecendo comover-se mais com a sua carga de humanos mortos do que com as carcaças de gado que distribuía pelos talhos depois de ter levado as reses ao matadouro e ter trocado a camioneta por uma carrinha com caixa refrigerada. Em cada ramo de negócio ele procurava oportunidades ao longo de toda a cadeia de produção.
A sua vida ao volante foi quase sempre desenvolvida nas proximidades da morte. Quando andou a transportar flores — antes da temporada em que conduziu, bêbado, a ambulância dos bombeiros —, sabia que muitas delas se destinavam a coroas para velórios e funerais, mas nessa altura preferia evocar o lado primaveril da carga, escolhendo sempre uma flor para pôr na orelha (um improvável hippie, que nos anos de agricultor usava na mesma orelha hortelã para afastar mosquitos), e dedicando atenções, piropos e ramos coloridos às moças com que se cruzava. Nas viagens entre a Suíça e Portugal, a transportar emigrantes quase sempre com o trágico Graciano Saga no leitor de cassetes, teve acidentes, alguns graves, mas teve sobretudo, ninguém duvidasse, histórias espantosas ou heróicas de sobrevivência — que contava enfaticamente, se necessário subindo de repente para cima das mesas do café com os seus óculos escuros à John Lennon e sapato preto de fivela, como se se preparasse para declamar os Lusíadas à turba ignorante.
Foi também, jurava que com sucesso, entre outras coisas, trolha, serralheiro, guarda-nocturno, fabricante de queijos, jardineiro, ajudante de veterinário rural, fiel de armazém, roadie de um conjunto de baile, porteiro de discoteca, cobrador de água, carteiro num Verão, canalizador, bate-chapas, auxiliar de enfermagem, encarregado de limpeza numa escola, telefonista da Câmara (nunca conseguiu efectivar na função pública por indecisão doutrinária), caixa numa tabacaria, gerente de um bar de snooker e flippers, DJ numa danceteria muito antes da febre do quizomba (técnica que não dominava), distribuidor de pizzas nos anos negros de Passos Coelho e, por fim (mas não no fim), motorista e guarda-costas de um velho traficante de drogas e armas do Barroso, antigo informador da Judiciária.
Aos cinquenta e cinco morreu, ele diria que por não saber mais o que fazer, mas foi revelado que a causa estava entre uma hepatite e uma cirrose. Porque o Ave-Rara bebia. Muito. Quando o conheci já ele tinha aquela alcunha, mas só anos depois soube que ela tinha evoluído, com coerência semântica, de Canário, o epíteto original, e Papagaio, o que vigorou nos primeiros anos da sua idade adulta. É que ele tinha cantado o fado, mal acompanhado à guitarra folk, em acordes esgalhados, por um aprendiz de torneiro mecânico que andava na Escola Industrial e mais tarde viria a idolatrar Jerónimo de Sousa. Nem cantaria mal, a não ser que o tivessem alcunhado por ironia, o que era, aliás, mais provável, conhecendo-se a crueldade do povo. Já Papagaio não havia dúvidas de que era apodo exacto, essa sua fase eu conheci, quando ele enchia todo o ar que nos rodeava de palavras, muitas vezes indiferente ao seu significado ou a uma qualquer lógica que as pudesse relacionar umas com as outras. O Ave-Rara, antes de ser oficialmente uma excentricidade, era um incansável e cansativo utente da língua portuguesa, com inclinação para o seu lado mais vernáculo e obsceno.
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