Há duas décadas os blogues vieram permitir um exercício
público de opinião livre das rotinas da imprensa tradicional. A liberdade e o
individualismo favorecidos pelo novo medium
e, claro, as décadas entretanto passadas sobre o 25 de Abril e o Estado Novo
estimularam o surgimento de uma nova direita no espectro político português. Esta
direita — educada, culta, cosmopolita, frequentemente com sensibilidade
estética e artística, aparentemente menos preconceituosa e mais tolerante (com
ferozes excepções) — foi ganhando espaço mediático no país e fazendo sair do
armário (no sentido ideológico) alguns intelectuais mais velhos que por ai
pairavam sem pouso doutrinário totalmente definido, receosos de dizerem o que
realmente pensavam ou sem certezas quanto àquilo que realmente pensavam (ou
desejavam pensar). Este esclarecimento ou esta «normalização» política foram
positivos, por permitirem que algumas pessoas assumissem ideias de direita sem
receio de serem conotadas com o fascismo salazarista. A democracia e o debate
político cresceram.
Contudo, relegando alguma da sua formação cultural mais esclarecida
e universalista, uma parte desta nova direita cedo se deixou embevecer pelo
pragmatismo, pelo cinismo, pelo messianismo ou simplesmente pela bravata
neoliberal que nos EUA vinha dominando o Partido Republicano. (Há um
adolescente lado cowboy nesta direita
e no seu frequente louvor dos duelos e bengaladas queirosianas ou oitocentistas,
com correspondência num certo baronato socialista.)
Os primeiros sinais disso foram, logo no início, o espantoso
apoio à invasão do Iraque em 2003. Se fosse a esquerda a demonstrar tal grau de
ingenuidade e crendice (ou de oportunismo), teria sido simplesmente demolida (e
bem) pelo pensamento sofisticado da nova direita. No entanto, ainda hoje várias
figuras dos blogues (agora nos jornais, na televisão ou nos partidos) se revelam
incapazes de reconhecer o erro cometido num momento que foi determinante na definição
do mundo que hoje temos.
Mais recentemente, esta nova direita, já constituída pelos bloggers e pelos «velhos» saídos do
armário, encontrou no Correio da Manhã
o seu fetiche de mundivisão, o seu oráculo político-religioso. Com esta direita
intelectualmente desenvolvida, o jornal deixou de ser um órgão sensacionalista,
um mero tablóide a fazer o que os tablóides fazem, para passar a ser o órgão
que melhor informa sobre o que realmente se passa no país, o que melhor revela
o que é Portugal: a sua corrupção política, os seus crimes, a sua violência
quotidiana — a podridão nacional, em suma.
Poder-se-ia pensar que havia neste contentamento com o
desvelar da negra alma lusa um desejo de correcção, de purga, de construção de
um país mais honesto, menos violento, mais justo, mas isso são pensamentos de
esquerda. A nova direita portuguesa não escreve no Correio da Manhã nem cita o Correio
da Manhã para que acordemos, para que nos vejamos ao espelho e nos
envergonhemos com o que somos. Nada disso. Na verdade, a nova direita quer que
conheçamos o país para que o aceitemos como
é. Tirando um ou outro caso político desenvolvido no jornal, em que a
imparcialidade é conveniente ao próprio statu
quo da nova direita portuguesa (nos outros casos geralmente cala-se ou
veste-se de virgem), e, portanto, é aí conveniente o apelo à justiça, à moral,
ao apuramento da espécie, a nova direita não fica realmente indignada com a imoralidade,
a injustiça, a violência, os crimes, a crueldade. Adoptam, alguns dos seus espécimes
mais tendentes à literatice (como de resto o velho centro-esquerda), a atitude
do aristocrata, espreitando das janelas altas do seu solar as ruas enlameadas,
levemente horrorizados, mas apenas como introdução teatral à constatação
inconsequente de que o país é uma choldra. Nos outros casos é simplesmente social-darwinista
— se se sabe do lado certo da evolução. (Neste campo é comum observar-se como
alguns jovens direitistas que saem de bairros, zonas ou grupos sociais deprimidos
para o sucesso académico, económico ou intelectual se revelam os mais
fervorosos na defesa não declarada de que é natural
uma luta das espécies e temos portanto de ser duros na nossa vida, nada de
mariquices.)
Não obstante fingir-se por vezes paladina de um povo essencialmente
«bom e honesto» que só existe na sua cabeça e que, sem rir, tenta fazer
coincidir com o leitor comum do Correio
da Manhã, a nova direita portuguesa tem, nalguns casos apenas porque uns
quantos pensadores de eleição o tiveram, um crónico pessimismo antropológico (predisposição
que, em minha opinião, é aliás altamente aconselhável a qualquer pessoa
sensata), e conclui, cinicamente, mas sem verdadeiramente o afirmar, que o que
importa é então que conheçamos o país através do Correio da Manhã —não que nos indignemos com o país que o Correio da Manhã revela. Aceitarmos o
país não nos resolve os problemas, mas não é isso que está em causa. O que está
em causa é que há coisas a que chamamos problemas que são apenas características, meras constantes
históricas e sociais. Se as aceitarmos, talvez nos possamos defender melhor
delas (diz a direita quando é piedosa ou residualmente empática) ou, melhor
ainda, talvez nos resignemos a conviver com elas.
Julgo que não há estudos universitários que analisem a estatística
da opinião publicada (e devia haver), mas, consultando a Internet ou os jornais
que por inércia vamos acumulando em casa (e para voltar a um assunto que me é
caro), podemos chegar à conclusão de que a direita é mais veloz e prolixa a
premir o gatilho contra os linchamentos de carácter por suposto assédio sexual
do que o tem sido contra a violência doméstica — ou seja, o machismo violento e
demasiadas vezes fatal. (De que, aliás, o seu Correio da Manhã quotidianamente nos informa.)
Seria errado propor que este desequilíbrio de opinião ou de
ênfase acontece porque a direita se identifica mais facilmente com os impulsivos
perpetradores da violência doméstica (ou com os alvos dos linchamentos
revanchistas) do que com as vítimas de assédio, tantas vezes frágeis e
impotentes, propícias a sucumbir na evolução das espécies. Não é isso. Acontece
é que a violência machista, mesmo que sabidamente nefasta, é um continuum histórico, enquanto a «revolta
feminista» é, precisamente, uma tentativa de quebrar o continuum histórico. E os conservadores sempre se incomodaram mais com as rupturas do que com as injustiças*.
* O mesmo se passa no plano económico, com as imoralidades actuais
do capitalismo a merecerem menos indignação do que qualquer modesta proposta de contenção
das desigualdades.
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