Leiam primeiro a sua argumentação:
«Com excepção da vergonha da Tecnoforma, nada na vida
de Passos Coelho o impede de ser docente em universidades nacionais.
A polémica dos convites a Passos Coelho
para dar aulas em três universidades só merece mais
do que uma linha de aversão porque reflecte um preconceito aberrante e expõe à
vista de todos uma atitude mesquinha e perigosa. O assunto não chegou ao grande
debate nos jornais (ficou-se pela pequena conversa de café ou pelas redes
sociais) porque fica mal expor ao grande público a arrogância de classe ou o
sectarismo ideológico mais básico que alguns dos críticos manifestaram. Mas,
mesmo na penumbra, a onda não deixa de ser reveladora e irritante. O sectarismo
que empurra uma certa esquerda, faz hoje de Passos Coelho o que a direita fez
com Mário Soares no Verão Quente.»
Em primeiro lugar,
a própria introdução do artigo anula toda a argumentação que defenda a
contratação de Passos, a não ser que a lógica para Manuel Carvalho seja uma
batata. Segundo as suas próprias palavras, há pelo menos uma coisa que de facto que impede a contratação de Passos, que é,
diz Manuel Carvalho, a «vergonha» da Tecnoforma. A nódoa da Tecnoforma pode ser
«excepcional» na vida do ex-PM, mas existiu e até Manuel Carvalho na sua
redacção a considera na verdade impeditiva da sua contratação como professor
equiparado a catedrático. Se não queria dizer isto (e provavelmente não queria),
Manuel Carvalho devia cuidar mais dos textos que escreve. Poderia ter dito, por
exemplo, que «Passos Coelho apenas teve um erro, mas esse erro não é suficiente
para impedir a sua contratação». Falando assim, MC revelaria mais
condescendência com as vilezas dos nossos chico-espertos da política, mas estaria
mais apto a ser literalmente coerente com a sua aceitação da contratação.
Já eu estarei
decerto a ser mesquinho com a análise semântica do artigo, mas a acusação dura de
Manuel Carvalho ao «sectarismo ideológico» dos críticos, tantos deles
professores universitários, exigia-lhe cuidado com a forma como se expressa. Sei
que a o artigo de MC, antes de ser uma defesa de Passos, pretende ser um ataque
ao tal «sectarismo ideológico» das universidades. Passos é apenas o pretexo, e MC
não se importa de, usando-o, defender a honra de Passos. (Também eu, na
verdade, estou a usar o excerto do artigo de MC como desculpa para falar da
contratação de Passos, por isso estamos quites.)
Mas
eu, ao contrário de MC, não desvalorizo «a vergonha» da Tecnoforma. Parece-me
reveladora de um carácter (aliás confirmado em vários outros momentos de
mentiras e hipocrisias na brilhante carreira do homem). Escrevi em tempos (aqui e aqui, por exemplo) que
Passos e Sócrates eram nalguns aspectos essenciais intermutáveis. Postos nas circunstâncias do outro, cada um deles
teria agido de forma basicamente semelhante. Com a conjuntura a favor, um
Passos pré-Troika teria trazido para o Estado a visão empreendedora que usou na Tecnoforma, só que com maior redistribuição de dinheiro público. Já
Sócrates, instigado pela mesma troika
que excitou Passos, teria liderado diligentemente um período de austeridade
reformadora, talvez com menos moralismo à mistura, mas com um resultado de
igual desprezo pelas pessoas comuns e favorecimento de privados. Parece-me por isso natural que se o dinheiro do Estado tiver permitido a um o mestrado parisiense permita agora ao outro a cátedra na
Universidade de Lisboa. Certos episódios da vida destas duas figuras nacionais
são as duas caras da mesma moeda com que se vende a dignidade e compra a
desfaçatez.
Em segundo lugar, não me esqueço de que ouvi Passos enquanto
Primeiro-Ministro acusar algumas universidades de manterem cursos sem procura e sem
pertinência apenas para «os senhores professores» poderem dar aulas. Cito um post que sobre isto escrevi à época:
Ora, o que mudou depois da saída de Passos Coelho do Governo? As
universidades públicas já não são censuradas por Coelho por quererem alargar o
quadro de docentes? (Julgo que não preciso de dizer que alargar é mais grave do que manter
no catecismo de moralização da função pública seguido por Passos.) Agora já
podem? Em todos os casos ou só no dele?
Vejamos também a coisa por outro ângulo, não necessariamente ligado a
austeridade passista: o ISCSP passou de repente a ter uma necessidade premente
de professores? Já teria esta vaga antes e não a tinha conseguido preencher? O
Instituto andava desesperadamente à procura de alguém com o perfil de Coelho e
ainda não o tinha encontrado? O Presidente do ISCSP (Manuel Meirinho, eleito
deputado nas listas do PSD no ano em que Passos ganhou o Governo) não tem nada
que ver com a identificação desta súbita necessidade de um professor com as
características de Passos Coelho?
Já li por aí que houve antes casos similares (dizem que o de Vítor Constâncio
é um deles) e, acusam os defensores de Passos, as pessoas não se queixaram como
agora. Este é o habitual argumento idiota que exige igualdade permanente nas reacções
e críticas, como se o mal de uma coisa dependesse de ele ter sido identificado
e criticado em igual medida noutra. Como se fosse desculpável o erro de alguém
por não se ter denunciado um erro semelhante de outra pessoa. A lógica deste
género de pseudo-argumentação (e o prefixo pseudo
é usado aqui adequadamente, porque só em mentes infantis ou perturbadas por
cegueira ideológica ou clubística aquela espécie de relativização constitui um argumento) é a mesma que poderemos
aplicar, cinicamente, às vítimas da estatística que não tenham tido a sua parte
do frango na célebre enunciação: se em cada duas pessoas uma comer um frango,
em média cada pessoa come meio frango. Ou, melhor ainda, no poema de Cesariny: «Que
afinal o que importa não é haver gente com fome / porque assim
como assim ainda há muita gente que come».
Estes invocadores dos «casos passados» querem, num primeiro momento,
fazer-nos crer que se um pecado é comum talvez ele não seja na verdade pecado,
estamos enganados no juízo que fazemos sobre a pessoa que defendem. Mas logo a
seguir censuram-nos ferozmente por não termos sido lestos a denunciar o erro
anterior que lhes serve de relativização, num crescendo que termina invertendo
as coisas: o verdadeiro erro a merecer punição foi o anterior, o do elemento do
clube contrário, que passou incólume porque as pessoas então se distraíram ou
não acharam mal por serem do mesmo clube. Não é só proporem que se cumpra uma
cronologia para a crítica e a punição (que as coisas se façam pela ordem dos
acontecimentos), ou defenderem uma interdependência de penas (pune-se o último
se se punir o primeiro): é tentar que percebamos que o erro cometido pelo seu correligionário
não é um erro, porque, ao contrário dos adversários, este e o seu alvo cu excluem-se
por unção divina da natureza fisiológica descrita no «Soneto Ascoroso» de
Bocage. E terminam com frequência já só violentamente indignados pelo erro
anterior, acreditando genuinamente, no seu fanatismo, que não houve o erro actual.
Alternativamente, esta gente que lembra os casos passados foca-se em nós próprios
para nos denunciar por termos estado calados e agora falarmos. De repente, mais
uma vez, o problema não é Passos ter a magna impudência de aceitar um tacho numa
universidade pública, é nós não termos constância na atenção e na crítica, é não
sermos polícias de plantão permanente, desde o nascimento até à cova, termos a
insolência de nos levantarmos só ocasionalmente e logo por azar quando o erro é
cometido por um camarada de quem nos denuncia. Esqueçam ter havido um pecado: o
que verdadeiramente abala as fundações da nação é a nossa indolência (e de
certo modo é, mas não pelas razões que nos acusam). Esqueçam Passos, o problema
somos nós.
Vasco Pulido Valente, que era acusado pelos seus detractores de não ser
exaustivo na crítica, de haver partes do país e dos seus oito séculos de
história que ele, cronista parcial, estrategicamente poupara (o que é aliás
improvável), tinha um manguito retórico sempre pronto como resposta, e algumas vezes
li o seu rosnado: fossem chatear o Camões, que ele escrevia sobre quem queria e
quando queria, não era obrigado a cumprir quotas.
Um resumo para os utentes do argumento idiota: a desfaçatez de Passos
Coelho (é deste caso que agora tratamos) não depende da desfaçatez de todos os
outros que aceitaram prebendas semelhantes e muito menos depende da actividade
e da coerência daqueles que o criticaram. De resto, a coerência não se mede contabilisticamente
nem tem por base a estatística. E uma maçã não deixa de ser uma maçã por não
termos dado uma dentada nas outras todas.
Em terceiro e último lugar, Passos foi o responsável por, entre outras
bondades, uma lei que determinou a extinção de um conjunto de empresas
municipais, com o consequente despedimento dos seus trabalhadores, sem se
preocupar se o trabalho que eles faziam era necessário ou não. Tendo-se
verificado que, em tantos casos, o trabalho era necessário, e após pressão sindical
e de um ou outro partido, lá concedeu que se acrescentasse à lei um artigo que
permitia às Câmaras abrirem concurso (na primeira fase limitado à função
pública) para esses postos de trabalho e, numa demonstração de impressionante generosidade,
fossem considerados elegíveis para se candidatarem os antigos trabalhadores das
empresas municipais, muitos com dez anos de serviço. Mas a generosidade do então
Primeiro-Ministro não foi ao ponto de permitir que esses trabalhadores
mantivessem a categoria e a posição remuneratória anteriores: havia moralização
a fazer no país e por isso os trabalhadores que quisessem continuar nos seus
postos haviam de passar pela humilhação do concurso e, caso vencessem, a de
serem integrados na posição mais baixa da carreira, não servindo de modo algum
o conhecimento, a experiência adquirida e a avaliação de dez anos de trabalho
para assegurar a manutenção do lugar, da categoria e da remuneração.
Perguntam-me se há algum problema na contratação do Professor Passos com vencimento equiparável ao de professor catedrático? Problema nenhum, por que
havia de haver?
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