Numa conversa alheia a que assisto no Facebook como numa esplanada de
café, com a mesma indiscrição semi-involuntária, alguém, uma mulher, diz de si
mesma:
«Eu sou um típico caso de pessoa tímida, não gosto muito que olhem para mim, mas sei que isso é um defeito (…)»
Esta confissão e autocrítica associam-se a um conjunto de argumentos
contra a penalização das propostas importunas de teor sexual (por preguiça
designadas como ‘piropos’), um processo que a mesma mulher, jovem e com
formação, considera promovido por «feminazis» (fêmeas ao que parece com vontade
de controlar os homens).
É sintomático que alguém venha criticar este aditamento legislativo ao
artigo 170.º do Código Penal considerando um defeito a sua própria timidez (ou
seja, o seu mal-estar com a importunação). É sintomático porque, apesar do tom
de bravata no resto do discurso, denuncia uma cultura de submissão, afinal o
terreno fértil onde o comportamento intrusivo tradicional, sem respeito pela
individualidade e pela sensibilidade do outro, se permite dominar, com direitos
de cidade superiores, por supostamente a extroversão, incluindo este tipo de
extroversão opressor, ser a condição ‘normal’, a condição das pessoas sem
defeitos.
Não, cara facebookiana desconhecida, a sua timidez não é um defeito, é
uma característica, aliás comum, que cabe a todas as outras pessoas respeitar. Defeito
é a incontinência do ‘piropo’ importuno. Defeituoso é o caracter de todos
aqueles que acham legítimo importunar outras pessoas com seja que tipo de pensamento
ou desejo lhe vai na cabeça ou nas partes.
Teria sido necessário legislar sobre isto? Eventualmente não. Se os tímidos
não achassem defeituosa a sua timidez e os importunadores tivessem suficiente educação
e carácter para controlar a sua líbido excessiva. Mas se as vítimas nunca tivessem
de recalcar a sua condição e os opressores jamais oprimissem, todo o Estado de Direito,
com todos os seus códigos, toda a sua artilharia legislativa, seria pouco mais
do que uma redundância, não?
Existem várias formas de uma sociedade prevenir comportamentos
perturbadores da integridade alheia sem necessidade de recorrer ao braço pesado
da Lei. A censura familiar e social pode ser uma delas. Quando esta falha,
talvez devêssemos apreciar haver no país capacidade legislativa independente da
vox populi. Se a vox populi prefere defender o direito de alguém a ser grunho (ou
pior do que isso) contra a liberdade do outro, talvez aqueles que elegemos, numa
democracia representativa, tenham o dever de se elevar acima da miséria moral e
aprovar leis que defendam os tímidos do despotismo da ‘normalidade’.
Concordo. Mas acho que se confundem insultos com piropos.
ResponderEliminarTal como se confunde tanta coisa neste país, onde é mais fácil prender quem rouba um tostão que um milhão.
Caro Luís,
ResponderEliminarA confusão não é entre piropo e insulto. É de importunação que se trata. Mas é verdade que a utilização do termo 'piropo' (simplista, ambígua e como tal errada) por parte da imprensa não tem ajudado nada este debate. Por outro lado, há apesar de tudo suficientes artigos na imprensa que explicam o que pretendeu o aditamento à lei, os leitores é que, coitados, não se dão ao trabalho de se esclarecerem, preferem alimentar a indignaçãozinha à volta da coerção do piropo, essa figura fundamental da liberdade de expressão.
Excelente texto, tão oportuno, não só pela "discussão do piropo" em Portugal, como pelos acontecimentos na noite de passagem de ano, em várias cidades alemãs, com o seu auge em Colónia.
ResponderEliminarA «cultura de submissão»; «Teria sido necessário legislar sobre isto? Eventualmente não. Se (...) os importunadores tivessem suficiente educação e carácter para controlar a sua líbido excessiva» - tudo tão verdade!