quarta-feira, 2 de maio de 2018
Revista de blogues
Por crónica falta de tempo, acompanho hoje poucos blogues.
Mesmo da lista reduzida aqui na coluna da direita só consulto regularmente meia
dúzia: o de Francisco José Viegas, pela escrita e as notas de erudição e
raramente ou nunca pelas ideias (com frequência atrozes); o Âncoras e Nefelibatas, belo mas pouco
produtivo nos últimos tempos, o Bicho Ruim, marginal, maldito e bem-querido, o Delito de Opinião, que visito cada vez menos por me desinteressar a
política partidária que ali tem amplo debate e demasiado catecismo, o Jas-Mim, um dos poucos vila-realenses
que conheço capazes de um diálogo culto com o mundo, o Marginal Ameno, do melancómico Nuno Costa Santos, o Ouriquense, de muito interessante autor,
para mim anónimo, exilado nesse belo Alentejo de que Ourique, a vila, não é a
melhor parte, e, por fim, mas no topo do que resta do meu vício bloguista, o Coração Acordeão, do magnífico prosador,
diarista e ironista António Gregório. O António não é dealer que apareça todos os dias (ao contrário da pródiga e também
excelente Ivone Mendes da Silva, no Facebook), e por isso a visita ao seu blogue
é antecedida de alguma agonia, mas quando vemos que há nova entrada o sangue volta
a correr-nos nas veias e no final da leitura já leva dentro química suficiente
para nova reconciliação com o mundo.
segunda-feira, 30 de abril de 2018
Caderneta de cromos
[de um trabalho em curso]
«Suponho que
toda esta treta dos retratos é uma desculpa para falar de mim, para escrever
dissimuladamente pedaços da minha autobiografia. (Não é demasiado cedo para
isso, há hoje quem publique memórias aos vinte e poucos anos e eu tenho o dobro
da idade desses actores, músicos, futebolistas e demais punheteiros que,
assisadamente, querem a posteridade quando dela podem desfrutar.) No que
escrevemos sobre os outros traímos um pouco da nossa essência, a nossa vida é
apanhada nos ricochetes, nos reflexos, nos apartes, nas considerações. Ou
aquilo que julgamos ser a nossa vida. Ou aquilo que queremos que os outros julguem que é a nossa vida — não
subestimemos a capacidade de o nosso inconsciente vaidoso ou protector nos dar
a volta no momento em que gostaríamos de ser sinceros.
Coleccionar
cromos — os nossos cromos, os cromos que tiveram o Oscar para o melhor papel
secundário em alguns anos da nossa vida — é também uma forma de tergiversar.
Com a caderneta preenchida, bum!, revela-se finalmente o ponto, a intenção
oculta, a big picture, o verdadeiro retrato
ou uma boa parte dele. Não de uma época ou de uma comunidade: o nosso. Falamos
dos outros para falar de nós. Os meus cromos são parte de mim e coleccioná-los,
colhê-los com tranquila metodologia e paciente periodicidade em vez de os
agarrar em simultâneo, é adiar, aguardar, preparar o campo para a revelação. É
também compor da melhor maneira o ramalhete, com minúcia de jardineiro japonês,
seleccionando sem urgência as flores mais adequadas e rejeitando as que afectam
negativamente o conjunto, as que podem perturbar o efeito que se pretende com o
bouquet.
Acresce que
também podemos tergiversar quando parecemos ter por objectivo a sinceridade, quando
parecemos estar a revelar intenções ocultas. As intenções ocultas, por vezes,
escondem outras intenções, na sobreposição de camadas que é o palimpsesto das
nossas vidas. Uma hora no confessionário pode não ser mais do que uma hora de
pausa ou de espera, como se tivéssemos entrado na igreja para fazer horas, para
nos abrigarmos da chuva ou para tomar fôlego, para construir um alibi. Confessar
um crime para esconder outro: o mais inconfessável, porque mais grave, mais
comprometedor ou simplesmente mais embaraçoso. Podemos preferir alguns anos de
prisão ao embaraço de certas revelações. O sacrifício pessoal não é apenas uma
prerrogativa dos heróis, também os cobardes por vezes escolhem o que parece ser
o maior sofrimento porque, na sua perturbação, no seu trauma, na sua insanidade
temporária ou definitiva, avaliam mal as coisas, erram na ponderação, na
hierarquia das prioridades e submetem-se a um mal maior pela incapacidade de
aceitar o mal menor. A «fuga para a frente» é uma táctica que muitos de nós
usamos mais vezes do que estamos dispostos a aceitar.
Grande vai o
exagero, em todo o caso. Não tenho crimes a confessar, apenas o de estar para
aqui a adiar o momento em que terei de falar de Juliana. É esse o ponto.
Imaginem um daqueles filmes históricos, épicos, que iniciam com grandes planos
de batalhas ou êxodos de massas, as multidões inicialmente vistas a vol d'oiseau (ou de drone, nos dias que
correm), depois a câmara a deter-se por momentos num ou noutro figurante, a
revelar a seguir as castiças personagens secundárias, até que finalmente
encontra os protagonistas e mostra os seus rostos em profunda comiseração ou
com semblantes altivos no meio da miséria humana. É assim esta minha caderneta,
um plano-sequência à procura de Juliana no meio da pequena multidão da Serra
Talhada.»
quarta-feira, 4 de abril de 2018
Artes, públicos, apoios
A propósito do debate gerado por nova falha de mais um
modelo do apoio às artes performativas em Portugal — com manifestações de
solidariedade mas também de inveja, com indignações ao rubro pela escassez do
apoio e indignações não menos afogueadas por o Estado ainda se dar a esse luxo
claramente acima das nossas possibilidades e interesses —, relembro um texto de
2014, publicado aqui no blogue. Pode ser lido neste link: http://canhoes.blogspot.pt/2014/06/deixem-o-pimba-em-paz-as-artes-e-o.html
Se tivesse tempo (e ânimo) desenvolveria melhor uma ou outra
ideia, corrigiria uma ou outra passagem, acrescentaria outras reflexões, dados (e culpados). Sobretudo corrigiria, com matéria adequada, o tom pessimista, que hoje, passados quatro
anos e várias experiências vividas, sei não ser uma inevitabilidade. De forma
nenhuma.
sábado, 24 de março de 2018
a violenta e cruel natureza da sobrevivência
[de um trabalho em curso]
«Aos domingos,
a minha mãe era capaz de passar as primeiras horas da manhã a ler um livro de
poesia e levantar-se a seguir do seu sofá junto à janela para ir matar um
coelho ou uma galinha para o almoço. Aos coelhos segurava-os pelas pernas traseiras,
de cabeça para baixo, e aplicava-lhes uma pancada seca na nuca com a mão em
cutelo. Por vezes precisava de meia dúzia de pancadas e, entre os golpes, o
animal ficava a contorcer-se, em agonia e espasmos. Às galinhas metia-as
debaixo do braço, dobrando-lhe o bico para o pescoço com a mão esquerda, de
modo a expor-lhe a parte de trás da cabeça onde iria cortar com uma faca até à
morte do animal. Não me recordo — porque sempre procurei fingir que aqueles
episódios da nossa vida não existiam —, mas julgo que este método a haveria de
sujar de sangue. O coelho ou a galinha eram a seguir despidos da pele ou das
penas na banca da cozinha. Depois do choque insuportável que era para mim a
morte dos animais, o processamento da galinha era-me menos dorido, se calhava
passar na cozinha durante a preparação. As galinhas eram menos consideradas,
não só na nossa casa, tratava-se de um aspecto cultural generalizado. As
crianças eram levadas a ver os pintainhos, mas depois de eles crescerem e
ganharem penas, se assemelharem às galinhas adultas, não recebiam mais afectos,
eram simplesmente tolerados à solta pelo quintal. Os coelhos, contudo, tinham
um estatuto próximo dos animais de estimação. Embora raramente saíssem das suas
coelheiras, onde eram mantidos até ao dia em que fossem chamados a ser a
iguaria na refeição, estabelecíamos com eles uma relação mais duradoura. Eu não
percebia como depois a minha mãe era capaz de lhes pegar com toda a frieza ou
indiferença para os espancar até à morte. Uma das vezes em que inadvertidamente
entrei na cozinha a meio do sacrifício, reconheci o bicho e fiz uma cena de
choro e berraria. A minha mãe procurou com serenidade explicar-me que aquela
era a ordem natural das coisas. Perguntou-me se eu não gostava de comer coelho
estufado, que era o prato que iria preparar (e sabia que eu gostava), e
convidou-me a ajudá-la a tirar-lhe a pele. Fiquei horrorizada, mas
simultaneamente paralisada. Enquanto a galinha depenada simplesmente se
assemelhava a um frango assado que não tivesse passado pelo forno, um pedaço de
comida sem relação para mim muito óbvia entre o que via na cozinha e o que dias
antes vira no quintal, o coelho esfolado revelava a natureza dos corpos vivos,
uma proximidade assustadora com a consciência que tinha do meu próprio corpo
pelas imagens que espreitava em livros de ciências. Enquanto a minha mãe ia
puxando a pele, que saía inteira como quando me tirava as camisolas de lã pela
cabeça, ia-se revelando a anatomia do animal e os tecidos musculares, os ossos
a aflorar — uma infra-estrutura biológica, se assim se pode dizer, demasiado
mamífera para que eu pudesse escamotear a similitude com a minha própria
fisicalidade.
E contudo
esses momentos violentos e insuportáveis não chegavam para que eu ficasse com
uma ideia negativa da minha mãe, para que sentisse menos afecto por ela.
Tacitamente, fomos acordando que eu evitava a cozinha nessas manhãs e que ela
não voltava a tentar convencer-me da naturalidade do abate dos animais. Mais
tarde tornei-me vegetariana, mas durante muitos anos ainda comi com prazer
carne, apaziguando a minha consciência com a ideia (fantasiosa) de que o país
evoluíra e os métodos de abate de animais eram então indolores e os bichos eram
conduzidos ao matadouro com tacto, sem stresse, depois de terem passado os dias
da sua curta vida em quintas bucólicas que sabia serem meras e escassas
excepções. Criei com o mundo uma relação semelhante à que tinha com a minha
mãe, preferindo ignorar o lado negro ou a violenta e cruel natureza da
sobrevivência.»
quarta-feira, 14 de março de 2018
Sociologia de supermercado #2
— Quando for grande quero ser um génio.
— Já tivemos esta conversa.
— Quero ser como o Einstein.
— Esse não, escolhe outro.
— Porquê, mãe?
— Os génios não têm grande futuro.
— Mas eu quero ser o Einstein.
— O Einstein morreu sozinho, pobre, na desgraça.
— Mas foi um génio, eu li.
— Não insistas.
— Vou ser o Einstein.
— Na escola não têm livros sobre o dono da Sonae, por exemplo?
— Sonae? O que é Sonae?
— Já tivemos esta conversa.
— Quero ser como o Einstein.
— Esse não, escolhe outro.
— Porquê, mãe?
— Os génios não têm grande futuro.
— Mas eu quero ser o Einstein.
— O Einstein morreu sozinho, pobre, na desgraça.
— Mas foi um génio, eu li.
— Não insistas.
— Vou ser o Einstein.
— Na escola não têm livros sobre o dono da Sonae, por exemplo?
— Sonae? O que é Sonae?
Sociologia de supermercado #1
O cliente pousa as laranjas no tapete e a caixa tenta equilibrá-las na balança à sua frente.
— Não havia lá sacos?
— Julgo que sim, mas não são necessários, não é?
— Ah, você é anti-sacos…
— Não havia lá sacos?
— Julgo que sim, mas não são necessários, não é?
— Ah, você é anti-sacos…
sábado, 10 de março de 2018
O Professor Passos
Não assinei o Público
online porque o jornal me pedia mais
dados sobre a minha vida do que o que eu estava disposto a dar-lhe e por isso
só consegui ler o lead e um parágrafo
do artigo de Manuel Carvalho sobre a polémica do Professor Passos Coelho. Contudo, a não ser que o resto do artigo
esteja em contradição com a sua introdução (o que seria absurdo), não julgo que
me precipite ao dizer que discordo totalmente de Manuel Carvalho.
Leiam primeiro a sua argumentação:
«Com excepção da vergonha da Tecnoforma, nada na vida
de Passos Coelho o impede de ser docente em universidades nacionais.
A polémica dos convites a Passos Coelho
para dar aulas em três universidades só merece mais
do que uma linha de aversão porque reflecte um preconceito aberrante e expõe à
vista de todos uma atitude mesquinha e perigosa. O assunto não chegou ao grande
debate nos jornais (ficou-se pela pequena conversa de café ou pelas redes
sociais) porque fica mal expor ao grande público a arrogância de classe ou o
sectarismo ideológico mais básico que alguns dos críticos manifestaram. Mas,
mesmo na penumbra, a onda não deixa de ser reveladora e irritante. O sectarismo
que empurra uma certa esquerda, faz hoje de Passos Coelho o que a direita fez
com Mário Soares no Verão Quente.»
Em primeiro lugar,
a própria introdução do artigo anula toda a argumentação que defenda a
contratação de Passos, a não ser que a lógica para Manuel Carvalho seja uma
batata. Segundo as suas próprias palavras, há pelo menos uma coisa que de facto que impede a contratação de Passos, que é,
diz Manuel Carvalho, a «vergonha» da Tecnoforma. A nódoa da Tecnoforma pode ser
«excepcional» na vida do ex-PM, mas existiu e até Manuel Carvalho na sua
redacção a considera na verdade impeditiva da sua contratação como professor
equiparado a catedrático. Se não queria dizer isto (e provavelmente não queria),
Manuel Carvalho devia cuidar mais dos textos que escreve. Poderia ter dito, por
exemplo, que «Passos Coelho apenas teve um erro, mas esse erro não é suficiente
para impedir a sua contratação». Falando assim, MC revelaria mais
condescendência com as vilezas dos nossos chico-espertos da política, mas estaria
mais apto a ser literalmente coerente com a sua aceitação da contratação.
Já eu estarei
decerto a ser mesquinho com a análise semântica do artigo, mas a acusação dura de
Manuel Carvalho ao «sectarismo ideológico» dos críticos, tantos deles
professores universitários, exigia-lhe cuidado com a forma como se expressa. Sei
que a o artigo de MC, antes de ser uma defesa de Passos, pretende ser um ataque
ao tal «sectarismo ideológico» das universidades. Passos é apenas o pretexo, e MC
não se importa de, usando-o, defender a honra de Passos. (Também eu, na
verdade, estou a usar o excerto do artigo de MC como desculpa para falar da
contratação de Passos, por isso estamos quites.)
Mas
eu, ao contrário de MC, não desvalorizo «a vergonha» da Tecnoforma. Parece-me
reveladora de um carácter (aliás confirmado em vários outros momentos de
mentiras e hipocrisias na brilhante carreira do homem). Escrevi em tempos (aqui e aqui, por exemplo) que
Passos e Sócrates eram nalguns aspectos essenciais intermutáveis. Postos nas circunstâncias do outro, cada um deles
teria agido de forma basicamente semelhante. Com a conjuntura a favor, um
Passos pré-Troika teria trazido para o Estado a visão empreendedora que usou na Tecnoforma, só que com maior redistribuição de dinheiro público. Já
Sócrates, instigado pela mesma troika
que excitou Passos, teria liderado diligentemente um período de austeridade
reformadora, talvez com menos moralismo à mistura, mas com um resultado de
igual desprezo pelas pessoas comuns e favorecimento de privados. Parece-me por isso natural que se o dinheiro do Estado tiver permitido a um o mestrado parisiense permita agora ao outro a cátedra na
Universidade de Lisboa. Certos episódios da vida destas duas figuras nacionais
são as duas caras da mesma moeda com que se vende a dignidade e compra a
desfaçatez.
Em segundo lugar, não me esqueço de que ouvi Passos enquanto
Primeiro-Ministro acusar algumas universidades de manterem cursos sem procura e sem
pertinência apenas para «os senhores professores» poderem dar aulas. Cito um post que sobre isto escrevi à época:
Ora, o que mudou depois da saída de Passos Coelho do Governo? As
universidades públicas já não são censuradas por Coelho por quererem alargar o
quadro de docentes? (Julgo que não preciso de dizer que alargar é mais grave do que manter
no catecismo de moralização da função pública seguido por Passos.) Agora já
podem? Em todos os casos ou só no dele?
Vejamos também a coisa por outro ângulo, não necessariamente ligado a
austeridade passista: o ISCSP passou de repente a ter uma necessidade premente
de professores? Já teria esta vaga antes e não a tinha conseguido preencher? O
Instituto andava desesperadamente à procura de alguém com o perfil de Coelho e
ainda não o tinha encontrado? O Presidente do ISCSP (Manuel Meirinho, eleito
deputado nas listas do PSD no ano em que Passos ganhou o Governo) não tem nada
que ver com a identificação desta súbita necessidade de um professor com as
características de Passos Coelho?
Já li por aí que houve antes casos similares (dizem que o de Vítor Constâncio
é um deles) e, acusam os defensores de Passos, as pessoas não se queixaram como
agora. Este é o habitual argumento idiota que exige igualdade permanente nas reacções
e críticas, como se o mal de uma coisa dependesse de ele ter sido identificado
e criticado em igual medida noutra. Como se fosse desculpável o erro de alguém
por não se ter denunciado um erro semelhante de outra pessoa. A lógica deste
género de pseudo-argumentação (e o prefixo pseudo
é usado aqui adequadamente, porque só em mentes infantis ou perturbadas por
cegueira ideológica ou clubística aquela espécie de relativização constitui um argumento) é a mesma que poderemos
aplicar, cinicamente, às vítimas da estatística que não tenham tido a sua parte
do frango na célebre enunciação: se em cada duas pessoas uma comer um frango,
em média cada pessoa come meio frango. Ou, melhor ainda, no poema de Cesariny: «Que
afinal o que importa não é haver gente com fome / porque assim
como assim ainda há muita gente que come».
Estes invocadores dos «casos passados» querem, num primeiro momento,
fazer-nos crer que se um pecado é comum talvez ele não seja na verdade pecado,
estamos enganados no juízo que fazemos sobre a pessoa que defendem. Mas logo a
seguir censuram-nos ferozmente por não termos sido lestos a denunciar o erro
anterior que lhes serve de relativização, num crescendo que termina invertendo
as coisas: o verdadeiro erro a merecer punição foi o anterior, o do elemento do
clube contrário, que passou incólume porque as pessoas então se distraíram ou
não acharam mal por serem do mesmo clube. Não é só proporem que se cumpra uma
cronologia para a crítica e a punição (que as coisas se façam pela ordem dos
acontecimentos), ou defenderem uma interdependência de penas (pune-se o último
se se punir o primeiro): é tentar que percebamos que o erro cometido pelo seu correligionário
não é um erro, porque, ao contrário dos adversários, este e o seu alvo cu excluem-se
por unção divina da natureza fisiológica descrita no «Soneto Ascoroso» de
Bocage. E terminam com frequência já só violentamente indignados pelo erro
anterior, acreditando genuinamente, no seu fanatismo, que não houve o erro actual.
Alternativamente, esta gente que lembra os casos passados foca-se em nós próprios
para nos denunciar por termos estado calados e agora falarmos. De repente, mais
uma vez, o problema não é Passos ter a magna impudência de aceitar um tacho numa
universidade pública, é nós não termos constância na atenção e na crítica, é não
sermos polícias de plantão permanente, desde o nascimento até à cova, termos a
insolência de nos levantarmos só ocasionalmente e logo por azar quando o erro é
cometido por um camarada de quem nos denuncia. Esqueçam ter havido um pecado: o
que verdadeiramente abala as fundações da nação é a nossa indolência (e de
certo modo é, mas não pelas razões que nos acusam). Esqueçam Passos, o problema
somos nós.
Vasco Pulido Valente, que era acusado pelos seus detractores de não ser
exaustivo na crítica, de haver partes do país e dos seus oito séculos de
história que ele, cronista parcial, estrategicamente poupara (o que é aliás
improvável), tinha um manguito retórico sempre pronto como resposta, e algumas vezes
li o seu rosnado: fossem chatear o Camões, que ele escrevia sobre quem queria e
quando queria, não era obrigado a cumprir quotas.
Um resumo para os utentes do argumento idiota: a desfaçatez de Passos
Coelho (é deste caso que agora tratamos) não depende da desfaçatez de todos os
outros que aceitaram prebendas semelhantes e muito menos depende da actividade
e da coerência daqueles que o criticaram. De resto, a coerência não se mede contabilisticamente
nem tem por base a estatística. E uma maçã não deixa de ser uma maçã por não
termos dado uma dentada nas outras todas.
Em terceiro e último lugar, Passos foi o responsável por, entre outras
bondades, uma lei que determinou a extinção de um conjunto de empresas
municipais, com o consequente despedimento dos seus trabalhadores, sem se
preocupar se o trabalho que eles faziam era necessário ou não. Tendo-se
verificado que, em tantos casos, o trabalho era necessário, e após pressão sindical
e de um ou outro partido, lá concedeu que se acrescentasse à lei um artigo que
permitia às Câmaras abrirem concurso (na primeira fase limitado à função
pública) para esses postos de trabalho e, numa demonstração de impressionante generosidade,
fossem considerados elegíveis para se candidatarem os antigos trabalhadores das
empresas municipais, muitos com dez anos de serviço. Mas a generosidade do então
Primeiro-Ministro não foi ao ponto de permitir que esses trabalhadores
mantivessem a categoria e a posição remuneratória anteriores: havia moralização
a fazer no país e por isso os trabalhadores que quisessem continuar nos seus
postos haviam de passar pela humilhação do concurso e, caso vencessem, a de
serem integrados na posição mais baixa da carreira, não servindo de modo algum
o conhecimento, a experiência adquirida e a avaliação de dez anos de trabalho
para assegurar a manutenção do lugar, da categoria e da remuneração.
Perguntam-me se há algum problema na contratação do Professor Passos com vencimento equiparável ao de professor catedrático? Problema nenhum, por que
havia de haver?
Subscrever:
Mensagens (Atom)