[de um trabalho em curso]
«Suponho que
toda esta treta dos retratos é uma desculpa para falar de mim, para escrever
dissimuladamente pedaços da minha autobiografia. (Não é demasiado cedo para
isso, há hoje quem publique memórias aos vinte e poucos anos e eu tenho o dobro
da idade desses actores, músicos, futebolistas e demais punheteiros que,
assisadamente, querem a posteridade quando dela podem desfrutar.) No que
escrevemos sobre os outros traímos um pouco da nossa essência, a nossa vida é
apanhada nos ricochetes, nos reflexos, nos apartes, nas considerações. Ou
aquilo que julgamos ser a nossa vida. Ou aquilo que queremos que os outros julguem que é a nossa vida — não
subestimemos a capacidade de o nosso inconsciente vaidoso ou protector nos dar
a volta no momento em que gostaríamos de ser sinceros.
Coleccionar
cromos — os nossos cromos, os cromos que tiveram o Oscar para o melhor papel
secundário em alguns anos da nossa vida — é também uma forma de tergiversar.
Com a caderneta preenchida, bum!, revela-se finalmente o ponto, a intenção
oculta, a big picture, o verdadeiro retrato
ou uma boa parte dele. Não de uma época ou de uma comunidade: o nosso. Falamos
dos outros para falar de nós. Os meus cromos são parte de mim e coleccioná-los,
colhê-los com tranquila metodologia e paciente periodicidade em vez de os
agarrar em simultâneo, é adiar, aguardar, preparar o campo para a revelação. É
também compor da melhor maneira o ramalhete, com minúcia de jardineiro japonês,
seleccionando sem urgência as flores mais adequadas e rejeitando as que afectam
negativamente o conjunto, as que podem perturbar o efeito que se pretende com o
bouquet.
Acresce que
também podemos tergiversar quando parecemos ter por objectivo a sinceridade, quando
parecemos estar a revelar intenções ocultas. As intenções ocultas, por vezes,
escondem outras intenções, na sobreposição de camadas que é o palimpsesto das
nossas vidas. Uma hora no confessionário pode não ser mais do que uma hora de
pausa ou de espera, como se tivéssemos entrado na igreja para fazer horas, para
nos abrigarmos da chuva ou para tomar fôlego, para construir um alibi. Confessar
um crime para esconder outro: o mais inconfessável, porque mais grave, mais
comprometedor ou simplesmente mais embaraçoso. Podemos preferir alguns anos de
prisão ao embaraço de certas revelações. O sacrifício pessoal não é apenas uma
prerrogativa dos heróis, também os cobardes por vezes escolhem o que parece ser
o maior sofrimento porque, na sua perturbação, no seu trauma, na sua insanidade
temporária ou definitiva, avaliam mal as coisas, erram na ponderação, na
hierarquia das prioridades e submetem-se a um mal maior pela incapacidade de
aceitar o mal menor. A «fuga para a frente» é uma táctica que muitos de nós
usamos mais vezes do que estamos dispostos a aceitar.
Grande vai o
exagero, em todo o caso. Não tenho crimes a confessar, apenas o de estar para
aqui a adiar o momento em que terei de falar de Juliana. É esse o ponto.
Imaginem um daqueles filmes históricos, épicos, que iniciam com grandes planos
de batalhas ou êxodos de massas, as multidões inicialmente vistas a vol d'oiseau (ou de drone, nos dias que
correm), depois a câmara a deter-se por momentos num ou noutro figurante, a
revelar a seguir as castiças personagens secundárias, até que finalmente
encontra os protagonistas e mostra os seus rostos em profunda comiseração ou
com semblantes altivos no meio da miséria humana. É assim esta minha caderneta,
um plano-sequência à procura de Juliana no meio da pequena multidão da Serra
Talhada.»
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