É um domingo soalheiro de Inverno e os casais passeiam, cão pela trela e, nalguns casos, pequena mochila ao ombro, talvez com a câmara dos instantâneos de Fevereiro ou outros instrumentos necessários a um passeio soalheiro de domingo de Inverno.
Também o homem das entregas da Glovo passeia ao sol, companheira ao lado, cão pela trela e — porque não pode dar-se ao luxo de jantar fora à sexta nem de perder um serviço ao domingo — saco amarelo ao ombro.
domingo, 5 de fevereiro de 2023
No sofá do cabeleireiro
Comme d’habitude, o cabeleireiro vaticina que tenho cabelo para a vida. Para o contrariar um pouco, talvez por instinto de humildade, queixo-me molemente da abundância de cãs e da ameaça de entradas. Ele começa a contar-me um filme que viu no dia anterior e eu desligo, sou por natureza avesso a relatos de filmes. Ou a relatos. Quando chega às cenas finais apercebo-me de que o tema ainda sou eu e os meus queixumes sobre o envelhecimento. No filme, a protagonista, que padecia de imortalidade e via com angústia desaparecerem os amores uns atrás dos outros, fica finalmente feliz quando consegue tornar-se mortal e envelhecer junto ao mais recente amado. «É a lei da vida», termina o cabeleireiro a parábola morigeradora, referindo-se já de novo aos meus cabelos em geral firmes no lugar mas não imunes à passagem do tempo.
Depois de pagar, espreitei a factura, para ver que código CAE ele usara.
Depois de pagar, espreitei a factura, para ver que código CAE ele usara.
terça-feira, 31 de janeiro de 2023
Greased Lightnin'
De saia plissada e blusa de golas a espreitar da camisola de lã, a liceal pairava no passeio, em simultâneo tímida e desafiadora, expectante como um ser sem tempo. Mal tinha eu acabado de notar o figurino, já surgia do nada, como o DeLorean de Regresso ao Futuro, um vintage de motor rouco, com um improvável dragão em labaredas na porta e um pintas ao volante. Enquanto ele fazia esperar o trânsito para trocar olhares e sinais com a moça, aguardei que Travolta e Newton-John encetassem um dueto e me confirmassem assim que acabara de sair da pastelaria para o Grease. Ainda puxei um caracol para a testa, por impulso.
quarta-feira, 18 de janeiro de 2023
A angústia do Hawk-Eye antes do primeiro serviço
No seu primeiro dia no emprego, depois dos meses de estágio, Hawk-Eye estava nervoso. O caso não era para menos, tinha uma grande responsabilidade: ia ser juiz num dos maiores torneios do mundo. Na verdade, como boa máquina que era, ia desempenhar sozinho as funções de mais de meia dúzia de juízes humanos, e teria uma autoridade que ninguém disputaria. Mas isso, que o enchia de vaidade, era também a fonte da sua angústia. É que, a despeito de o regulamento do torneio não prever qualquer revogação das suas decisões — Hawk-Eye passara com distinção em todos os inúmeros testes e beneficiava daquela velha superstição humana de que os computadores não falham —, ele teria de deixar exibir nos ecrãs do estádio, de forma não vinculativa, para mero benefício das emoções do jogo, a repetição em slow motion e close up das bolas que, apesar da sua decisão soberana, dividissem opiniões quanto a terem ou não batido do lado certo da linha.
Enquanto no court se desenrolavam os rituais que habitualmente precediam os jogos, Hawk-Eye deu por si a roer os chips, como um novato. Tinha de pensar rápido, muito rápido. O que não representava nenhuma dificuldade para si, bem vistas as coisas: ele era por definição um dos processadores mais rápidos do mercado de trabalho.
Uma vez que era ele também quem estava encarregado de gerir a gravação e a reprodução de todas as imagens do jogo e tinha acesso ao enorme arquivo de jogos televisionados, treinos e testes com que o tinham amestrado para a profissão, Hawk-Eye tomou num milionésimo de segundo uma decisão pouco ética mas que deixaria todos, não só ele, descansados quanto à fiabilidade dos seus juízos. Procurou e encontrou — e quando não encontrou exactamente o que queria fez algumas montagens rápidas como um editor de efeitos especiais de cinema — arquivos com bolas que batiam em quase todos os centímetros quadrados do court, vindas de todos os ângulos possíveis e com toda a variedade de spin e velocidade que uma geração de tenistas conseguira até à data imprimir nas suas pancadas.
Quando o jogo começou Hawk-Eye estava já senhor da situação. Sabia que, se em alguma jogada ele próprio tivesse dúvidas quanto à decisão que seria obrigado a tomar num piscar de olhos, poderia exibir nos ecrãs e video walls do court uma repetição de arquivo (ou saída da mesa de montagem) que corroborasse a sua chamada.
Nem precisava de ser muito escrupuloso na mise-en-scène: por razões de gosto dos organizadores do torneio, as repetições deviam ser apresentadas com uma estética de simulação computadorizada, e, convenhamos, não há nada mais distante da realidade do que uma simulação computadorizada. De todo o modo, seria certamente necessária outra máquina como ele para detectar a fabricação, se em algum momento tivesse de recorrer a uma. Mas quanto a isso Hawk-Eye estava descansado, contava em última análise com a cumplicidade da sua tribo.
Enquanto no court se desenrolavam os rituais que habitualmente precediam os jogos, Hawk-Eye deu por si a roer os chips, como um novato. Tinha de pensar rápido, muito rápido. O que não representava nenhuma dificuldade para si, bem vistas as coisas: ele era por definição um dos processadores mais rápidos do mercado de trabalho.
Uma vez que era ele também quem estava encarregado de gerir a gravação e a reprodução de todas as imagens do jogo e tinha acesso ao enorme arquivo de jogos televisionados, treinos e testes com que o tinham amestrado para a profissão, Hawk-Eye tomou num milionésimo de segundo uma decisão pouco ética mas que deixaria todos, não só ele, descansados quanto à fiabilidade dos seus juízos. Procurou e encontrou — e quando não encontrou exactamente o que queria fez algumas montagens rápidas como um editor de efeitos especiais de cinema — arquivos com bolas que batiam em quase todos os centímetros quadrados do court, vindas de todos os ângulos possíveis e com toda a variedade de spin e velocidade que uma geração de tenistas conseguira até à data imprimir nas suas pancadas.
Quando o jogo começou Hawk-Eye estava já senhor da situação. Sabia que, se em alguma jogada ele próprio tivesse dúvidas quanto à decisão que seria obrigado a tomar num piscar de olhos, poderia exibir nos ecrãs e video walls do court uma repetição de arquivo (ou saída da mesa de montagem) que corroborasse a sua chamada.
Nem precisava de ser muito escrupuloso na mise-en-scène: por razões de gosto dos organizadores do torneio, as repetições deviam ser apresentadas com uma estética de simulação computadorizada, e, convenhamos, não há nada mais distante da realidade do que uma simulação computadorizada. De todo o modo, seria certamente necessária outra máquina como ele para detectar a fabricação, se em algum momento tivesse de recorrer a uma. Mas quanto a isso Hawk-Eye estava descansado, contava em última análise com a cumplicidade da sua tribo.
terça-feira, 10 de janeiro de 2023
Os nomes e as coisas
Uma das funções essenciais de um aprendiz na oficina de mecânico era obedecer estremecendo à ordem «cheg’aí os esperdícios». Os esperdícios eram um utensílio indispensável na oficina, mesmo quando, devido à quantidade de óleo absorvido, já sujavam mais do que limpavam. Mecânico que se prezasse tinha a espreitar do bolso de trás do fat’macaco azul as melenas coloridas e encaracoladas de um molho de esperdícios, mas alcançar aquela parte do corpo era mais trabalhoso do que berrar ao aprendiz por esperdícios.
O termo esperdícios — ligeira corruptela de «desperdícios», um aprendiz viria a saber muito depois —, embora designasse a coisa, não a descrevia. Era então apenas um nome, como martelo ou parafuso. Um aprendiz não se punha a pensar na palavra ao ponto de descobrir a corruptela e muito menos de perceber que o nome descrevia a composição do molhinho de fios coloridos. Do mesmo modo que nunca pensava na palavra «boca» quando tinha de chegar ao mestre a chave-de-bocas ou na palavra «fenda» quando o cirurgião, debruçado de unhas encardidas sobre a cambota padecente, pedia a chave-de-fendas. As palavras eram para um estremunhado aprendiz abstractas, não continham em si a denúncia da função, da composição ou do modo de emprego. Eram meros nomes.
Sobre a primeira das duas palavras-chaves atrás referidas um aprendiz poderia ter, contudo (mas não tinha), uma epifania quando, glutão, jogava Pac-Man depois da jorna; quanto à segunda, fosse um pouco mais sofisticado o léxico das frequentes aulas de anatomia feminil na oficina e a luz talvez se derramasse, ainda que vagamente, sobre um aprendiz.
Um artista quando muito jovem era também não raro aprendiz de electricista e nessa função chegava regularmente ao mestre o «moscapolos» — muito antes de perceber porque é que aquela chave-de-fendas tinha direito a um nome próprio e o que havia de bizarro nesse nome de ressonâncias gregas.
O termo esperdícios — ligeira corruptela de «desperdícios», um aprendiz viria a saber muito depois —, embora designasse a coisa, não a descrevia. Era então apenas um nome, como martelo ou parafuso. Um aprendiz não se punha a pensar na palavra ao ponto de descobrir a corruptela e muito menos de perceber que o nome descrevia a composição do molhinho de fios coloridos. Do mesmo modo que nunca pensava na palavra «boca» quando tinha de chegar ao mestre a chave-de-bocas ou na palavra «fenda» quando o cirurgião, debruçado de unhas encardidas sobre a cambota padecente, pedia a chave-de-fendas. As palavras eram para um estremunhado aprendiz abstractas, não continham em si a denúncia da função, da composição ou do modo de emprego. Eram meros nomes.
Sobre a primeira das duas palavras-chaves atrás referidas um aprendiz poderia ter, contudo (mas não tinha), uma epifania quando, glutão, jogava Pac-Man depois da jorna; quanto à segunda, fosse um pouco mais sofisticado o léxico das frequentes aulas de anatomia feminil na oficina e a luz talvez se derramasse, ainda que vagamente, sobre um aprendiz.
Um artista quando muito jovem era também não raro aprendiz de electricista e nessa função chegava regularmente ao mestre o «moscapolos» — muito antes de perceber porque é que aquela chave-de-fendas tinha direito a um nome próprio e o que havia de bizarro nesse nome de ressonâncias gregas.
quinta-feira, 29 de dezembro de 2022
O capitalismo como monarquia
É fácil encontrar apoiantes da monarquia em descendentes, mesmo que remotos, de marqueses, duques, condes, barões ou até escudeiros. Mais difícil será encontrar um que assuma sê-lo por nostalgia ou anelo do privilégio. Não serei muito injusto se disser que ninguém é monárquico porque deseja servir uma elite, mas porque considera ter boas possibilidades de pertencer a essa elite.
No capitalismo actual, as elites políticas e empresariais não vivem menos a legitimidade do privilégio do que velhos duques de bigode enrolado ou velhas duquesas de leque enfastiado. Pavoneiam-se pela urbe com absoluto descaramento, como outrora se desfilava ociosamente de caleche e cartola nas barbas do povo descalço e servil. Vê-las-ão com um esgar de nojo ou escândalo se ousarem falar-lhes das desprezíveis dificuldades de viver com o salário mínimo, como antes se observava na cara da aristocracia a máscara do tédio se o feitor mencionava a doença de um criadito.
Paulatinamente, desde os anos oitenta do século XX, o capitalismo foi fazendo o seu caminho na (re)instituição legal do privilégio de casta. É assim que a lei hoje aceita bonacheiramente despedir sem rebuço nem indemnização um assalariado e tem horror a tocar no vencimento milionário de um CEO, no bónus obsceno de um gestor ou na indemnização pornográfica de uma administradora. Na Idade Média, o valor de um condado podia ser medido pelo número de homens sob o domínio do seu senhor, geralmente centenas ou milhares. Hoje, é o valor do salário do “senhor” que pode ser medido pelo número de salários de homens comuns que cabem no seu cheque mensal, não raro centenas. Ou milhares. Em ambos os casos, a moral de Estado, recostada no canapé a coçar os interstícios das banhas, não via ou vê razões para alterar seja o que for.
A inabalabilidade do regime feudal não pode contudo servir de justificação para os desmandos de hoje. Assim como o que quer que Passos Coelho tenha legislado no seu pequeno reinado neoliberal não pode servir de desculpa hoje para a dinastia PS.
Indemnizações e vencimentos como os de Alexandra Reis (voilà!) não são uma fatalidade feudal. É possível no quadro legal em vigor, apesar de tudo, não pagar daquele modo, não indemnizar daquele modo. E sobretudo é possível mudar o quadro legal. Só não sei se ainda é possível mudar o quadro mental das castas sem mudar o sistema capitalista. E não vão ser elas a mudá-lo.
No capitalismo actual, as elites políticas e empresariais não vivem menos a legitimidade do privilégio do que velhos duques de bigode enrolado ou velhas duquesas de leque enfastiado. Pavoneiam-se pela urbe com absoluto descaramento, como outrora se desfilava ociosamente de caleche e cartola nas barbas do povo descalço e servil. Vê-las-ão com um esgar de nojo ou escândalo se ousarem falar-lhes das desprezíveis dificuldades de viver com o salário mínimo, como antes se observava na cara da aristocracia a máscara do tédio se o feitor mencionava a doença de um criadito.
Paulatinamente, desde os anos oitenta do século XX, o capitalismo foi fazendo o seu caminho na (re)instituição legal do privilégio de casta. É assim que a lei hoje aceita bonacheiramente despedir sem rebuço nem indemnização um assalariado e tem horror a tocar no vencimento milionário de um CEO, no bónus obsceno de um gestor ou na indemnização pornográfica de uma administradora. Na Idade Média, o valor de um condado podia ser medido pelo número de homens sob o domínio do seu senhor, geralmente centenas ou milhares. Hoje, é o valor do salário do “senhor” que pode ser medido pelo número de salários de homens comuns que cabem no seu cheque mensal, não raro centenas. Ou milhares. Em ambos os casos, a moral de Estado, recostada no canapé a coçar os interstícios das banhas, não via ou vê razões para alterar seja o que for.
A inabalabilidade do regime feudal não pode contudo servir de justificação para os desmandos de hoje. Assim como o que quer que Passos Coelho tenha legislado no seu pequeno reinado neoliberal não pode servir de desculpa hoje para a dinastia PS.
Indemnizações e vencimentos como os de Alexandra Reis (voilà!) não são uma fatalidade feudal. É possível no quadro legal em vigor, apesar de tudo, não pagar daquele modo, não indemnizar daquele modo. E sobretudo é possível mudar o quadro legal. Só não sei se ainda é possível mudar o quadro mental das castas sem mudar o sistema capitalista. E não vão ser elas a mudá-lo.
domingo, 4 de dezembro de 2022
Os anos
Leio as primeiras páginas de Os Anos, livro de Annie Ernaux, com um misto de nostalgia e inquietude. Nelas, por descrição ou sugestão, vejo passar em revista o tempo remoto da minha infância — mas vejo-o como se acabasse de ter um acidente e os anos se apressassem a desfilar.
Subscrever:
Mensagens (Atom)