quinta-feira, 5 de junho de 2025

Carta do futuro

[Texto que serviu de base ao video-selfie que, no Festival 5L, integrou a vídeo-instalação colectiva com o tema“Inovação: Utopia / Distopia”, um exercício literário de antecipação do futuro.]



«Lisboa, 1 de Setembro de 2039, quatro da tarde.

Ninguém invadiu hoje a Polónia porque todos têm preocupações maiores.

Vou falar-vos desse vosso ano de 2025, tão próximo e ao mesmo tempo tão distante. E vou falar-vos de vós, de nós. Mas se a nova aplicação de correio regressivo não for concluída e disponibilizada em tempo útil, quando virem esta mensagem, se a virem, será demasiado tarde.

Havia algo de profundamente mesquinho em nós quando, em 2025, perante todos os sinais da catástrofe que estávamos a causar, insistíamos em levar vidas habituais, em fazer planos de futuro que se desenhavam num cenário de evolução neutra ou benévola da História.

À escala do Universo, éramos menos do que grãos de areia no deserto, mas tornávamo-nos ainda mais insignificantes quando nos revelávamos incapazes de assumir, por iniciativa própria, um lugar construtivo na história do mundo. E éramos vis, porque tínhamos informação para lá da dúvida razoável mas não decidíamos nem agíamos.

Reivindicávamos a superioridade da espécie humana, mas em simultâneo atribuíamo-nos a inimputabilidade dos animais, sempre que isso convinha ao nosso conforto, à nossa inércia, ao desejo de sermos ilibados magicamente da responsabilidade pelas catástrofes do aquecimento global.

Era uma posição filosófica conveniente (mesmo que já não quiséssemos saber da filosofia para nada), esta definição ambígua de humano: senhor da Natureza, mas impotente face à sua própria natureza. Era sobretudo a desculpa adequada para continuarmos a agir como agíamos.

Este pensamento vantajoso e apaziguador só nos era permitido, só o tolerávamos, porque confiávamos que as grandes consequências do aquecimento global aconteceriam num horizonte cronológico para lá da nossa esperança de vida. Os climatologistas apresentavam o cenário do fim do século, e esse era o erro deles. 2100 era um ano de ficção científica, os humanos não se projectavam nele, mesmo os que dedicavam um pensamento aos seus filhos, que apenas lhes interessavam como crianças, não como futuros adultos e velhos.

Os humanos tinham derrotado os genes e a ambiciosa mensagem de persistência de que estes eram guardiães e transmissores. O instinto de sobrevivência circunscrevera-se no humano à sobrevivência do indivíduo, não da espécie. Os animais mantinham vivo o objectivo de sobrevivência da espécie, procriavam para dar um futuro à espécie; os humanos procriavam para legarem um pouco de si mesmos, da sua pessoa, ao futuro. Mas faziam-no como jogavam na lotaria, uma aposta que lhes daria felicidade, se vencedora, e os deixaria resignados ou indiferentes, se se revelasse falhada.

As notícias tinham começado a falar dos efeitos de curto prazo do aquecimento global, que já se podiam sentir, mas tinham-no feito tarde. O tempo que uma sociedade demorava a formar uma convicção colectiva que levasse os políticos a tomar as decisões necessárias era mais longo do que o que tínhamos.

E nós, criaturas sociais e submissas, precisávamos que as decisões sobre o nosso próprio comportamento fossem tomadas acima na hierarquia. A quantidade de pessoas que o fazia por iniciativa própria era insuficiente para causar um impacto determinante no desenrolar dos acontecimentos. Éramos a espécie-paradoxo, uma civilização em forma de círculo vicioso, de lenta espiral, na melhor das hipóteses. As decisões políticas precisavam do impulso dos cidadãos e um número suficiente e influente de decisões individuais precisava de determinação legislativa. Mas esta era a primeira vez que o ciclo evolutivo da sociedade excedia o tempo que ela tinha. Desta vez as grandes decisões políticas seriam tomadas quando o mundo-catástrofe fosse uma realidade, e então seria tarde.

Foi assim que chegámos a este ano crepuscular de 2039, uma antecipação nunca prevista do fim do século e do mundo.

…Tenho de terminar, só dão 3 minutos a cada um de nós. Imaginem o resto.»

terça-feira, 6 de maio de 2025

Carta do futuro

Há umas semanas viajei até 2039 para ver como paravam as coisas e de lá enviei uma vídeo-mensagem para o Festival 5L.
Podem vê-la todos os dias no recinto do festival (que começa hoje e decorre até 11 de Maio) ou, melhor ainda (tudo considerado...), lê-la na brochura ali distribuída.

É só conversa

Na próxima quinta-feira estarei no Teatro de Bolso a conversar com a Eduarda Freitas sobre a vida e o tempo. Na mesma sessão é apresentada a edição impressa de Fio Mental. Levem dinheiro na carteira.



quinta-feira, 1 de maio de 2025

O aborto

Montenegro, que todos deveriam recordar como arauto empenhadíssimo do governo passista da troika, resolveu juntar num pacote o 25 de Abril e o 1.º de Maio, embrulhando-o em programa com patine estado-novista e chamando ao aborto “São Bento em Família”. A farsa fica completa quando o seu convidado de honra, o cançonetista Tony Carreira, aproveita para apelar a que os governos dêem mais atenção à "cultura".

Como proposta de epitáfio intelectual de um país, o conjunto nem está mal.

terça-feira, 1 de abril de 2025

Fio Mental

  Diz que correu bem.


"𝐅𝐈𝐎 𝐌𝐄𝐍𝐓𝐀𝐋"

Da depressão à revolução. Ou vice-versa.
Quatro desconhecidos. Quatro quadros mentais. Quatro casos de mal-estar. Com o mundo, com a vida. Consigo próprios. Entre a espera rotineira, paciente ou nervosa na estação de metro e a aurora de uma revolução há um fino fio condutor. Um fio mental.

terça-feira, 25 de fevereiro de 2025

Uma história de violência

A história central de A Cicatriz, de Maria Francisca Gama, recordou-me uma passagem de Aranda. Esta com final feliz, por comparação.


«Joca — era ele que chegava — deixou tombar a bicicleta e subiu ao encontro do grupo, parando em frente a cada um como um oficial que vistoriasse as suas tropas. Inês sentiu como uma leve náusea a sensação de pertencer a um clube, uma associação, uma seita, com as suas praxes e cerimoniais. Temia que viesse a faltar a este encontro algum sentido do ridículo. Esperou que chegasse a sua vez de ser cumprimentada e quando levantou o rosto descobriu em Joca um olhar despeitado, um olhar incapaz de, por instantes, esconder a animosidade que alguma coisa em Inês lhe despertara.

Era uma sensação frequente. Ela não sabia se tinha o dom de causar aquele género de reacção nalguns homens ou se por alguma razão era particularmente perspicaz a descobrir-lhes um certo tipo de mágoa, de ressentimento. Eles reagiam assim e ela desvendava-lhes as emoções mais profundas ou instintivas.

Tinha vivido aquilo algumas vezes. Outras situações, outros intervenientes, mas a mesma inquietação, a mesma ameaça silenciosa, que por vezes se exteriorizava brutalmente. Como quando foi agredida numa rua da cidade onde morava por os seus olhos se terem cruzado com os de um rapaz. O que a sua memória evocou foi o primeiro episódio da sua saga, a saga de uma mulher bela demais.

 

Captara aquele olhar à primeira, captara-o e compreendera-o até ao limite do entendível, como se no instante que durou tivesse sido possível decompor o acto de observar nas suas múltiplas componentes e causas e intenções, desenhar mentalmente um diagrama que permitisse seguir os ramos da evolução que levou àquilo, perceber as bifurcações, as metamorfoses, o que falhou, onde tinha sido possível intervir.

Era um rapaz, não mais do que isso, dezassete ou dezoito anos, e não era feio — um corpo grosso mas sólido, sem a flacidez da obesidade nem as suas dobras e pregas pendentes, o cabelo encaracolado quase pelos ombros, como o de um guitarrista de grunge (a barba viria no ano seguinte ou pouco depois), a adequada camisa de xadrez por fora das calças, o queixo levantado, e os olhos cinzentos, semicerrados, líquidos, excessivamente eloquentes. Passou por Inês, que estava com o seu namorado da altura, no meio de um grupo de uns cinco ou seis rapazes, todos com o ar de quem tem uma rixa agendada para o minuto e esquina seguintes, braços arqueados, andar balanceado, decidido, agressivo, até, manada de elefantes pouco preparada para as minúcias da civilidade — embora fosse também manifesto que apenas se dirigiam ritualmente ao bar do fundo da rua.

Do grupo, só ele reparou no casal de namorados. Voltou-se no momento em que passava ao seu lado e Inês viu-o, aquele olhar, e era como uma sentença, um presságio, algo de que não se podia fugir. Muita coisa estava mal com o mundo para que aqueles rapazes se sentissem tão em baixo ao acordar e precisassem de construir personas assim. Ou talvez fosse apenas a má influência das revistas e da televisão. Provavelmente era a natureza humana — só à superfície deixáramos de ser guerreiros, ou seres instintivos. Uma parte de nós, pelo menos.

Inês tinha sido bonita toda a vida. Se houvesse protótipos para a beleza, ela era um, saída directamente das mãos do escultor mais dotado ao serviço da divindade. Não: a própria divindade se tinha encarregado de conceber as formas de Inês, de a moldar e proporcionar e de a colorir com os tons certos, sem recorrer à costela de ninguém, tudo material genuíno, imaginação pura. O cabelo de querubim era um capricho, um toque que denunciava a autoria. Como nascera numa família com posses, nunca fora necessário resgatar a sua formosura, ela não foi sequestrada pela indigência, não sofreu os ataques da má nutrição, da sujidade, das doenças, a sua beleza esteve sempre evidente. Talvez por isso fosse para Inês banal, supérflua, nada que a preocupasse nem a que se tivesse de dedicar particularmente. E, de resto, não era dela a culpa de ser bonita.

O rapaz pensava de forma diferente. Não teria por certo formação política ou ideológica, a não ser talvez uma réstia mal compreendida que passava através das gerações, ou que era já anterior a qualquer formulação teórica, aquela versão do marxismo que alimentava o ódio aos ricos e poderosos, mais tarde revista e aumentada com o ódio à beleza e à saúde e ao sucesso e à felicidade, a tudo o que permitisse aos outros sorrir enquanto nós lutávamos para respirar no lodaçal da nossa existência. Não tinha esse género de formação, mas não precisava. O que precisava era de apaziguar o ressentimento, de encontrar culpados para o que falhara consigo, para o seu permanente mau humor. Chegou à esquina e, como se se tivesse esquecido de alguma coisa, como se tivesse gastado os últimos passos a tentar lembrar-se de algo, voltou para trás e ela soube que o pressentimento era fundado.

Inês conseguiu que o namorado aceitasse sair daquele local mas cedo percebeu que tomaram a direcção errada. Ali havia luz e gente, mais acima os candeeiros rareavam e deixava de haver transeuntes. Ao fim de uns minutos de caminhada, e depois de terem mudado de passeio e de rua, não restavam dúvidas de que estavam a ser perseguidos.

O rapaz alcançou-os com uma última corrida, fazendo-os parar ao colocar-lhes as mãos nos ombros.

— Eu hoje estou fodido — disse ele, e era a sua melhor abertura.

Também estava drogado, achou Inês, tanto quanto podia ver para lá do oceano em que nadavam os olhos dele. Parecia chorar. A pose, a atitude, era a de um rufia, de um agressor, de alguém prestes a cometer um assalto ou uma violação, mas uma câmara que o focasse apenas do nariz para cima revelaria um tipo desesperado, o género de amigo ébrio que queria muito ser ouvido nas suas lamentações e no minuto seguinte nos vomitava os sapatos. Claro que Inês não era uma câmara de filmar num enquadramento apertado, tinha acesso ao retrato completo. Havia desespero, sim, mas não do género que se contentaria com um divã ou um ombro. O que aqueles olhos significavam era violência. Eram uns olhos acossados, mas de alguém que reage à desolação, ao desespero, à ameaça, à raiva com doses reforçadas de crueldade. O mundo, alegadamente, tinha feito mal àquele rapaz, fazia-lhe mal dia-a-dia, privava-o de coisas, humilhava-o, deixava-o sem saídas, dorido na sua presumida fealdade e impotência — e Inês sabia que ele queria vingança.

— Não faça nada de que se arrependa — gaguejou o namorado de Inês.

Continuavam de mão dada e ela sentiu-o tremer, mas de medo, não de fúria contida. A vantagem numérica significava pouco quando se tratava de um casal como eles, em que o elemento feminino não era dotado de relevante força muscular e em que ambos viviam longe de brigas e da disputa física.

— E do que é que eu me podia arrepender? — O rapaz limitava-se a olhar para Inês, com aquele ar de denúncia e lamento, olhos semicerrados, prestes a desfazerem-se em lágrimas, mas simultaneamente frios e acusadores. No corpo sentia-se a tensão de uma mola prestes a soltar-se.

Inês não sabia se era legítimo da sua parte esperar que o namorado agisse, que desse um passo em frente para mostrar que a protegeria, ou que pelo menos o iria tentar. Não se atrevia a solicitar o altruísmo alheio, mas certos códigos sociais não escritos, ou escritos muitas vezes sem nunca se referir a fonte original, determinavam que o homem protegesse a sua mulher. Ele não o fez. Não que não o desejasse, apenas não estava dotado de coragem física. O rapaz tocou a face de Inês e deixou que a mão descaísse e pousasse no ombro dela. O namorado esboçou um gesto irresoluto, vago, que foi logo repelido. Não voltou a tentar, embora numa parte do seu cérebro estivesse a adivinhar a humilhação, o remorso que o afrontaria o resto da vida.

Ela soube pela primeira vez o que era o medo, o medo profundo, medo absoluto. Não pela sua própria experiência (estava assustada, claro), mas indirectamente, pelo processo que sentia em ebulição no namorado. De certa maneira, não voltaria a estar ligada a nenhum homem como naquele momento esteve àquele. As suas mãos entrelaçadas eram como um feixe de nervos, a corrente eléctrica atravessava-os livremente e unia os dois cérebros. Ela estava a ter duas experiências em simultâneo, a sua e a do namorado. Vivia o seu próprio medo e o pânico que explodia nas sinapses do namorado.

O rapaz agarrou o queixo de Inês e hesitou no passo seguinte. Não era um violador nem tinha pensado em assaltar o casal. Na verdade, não tinha um plano. Tudo que sentia era vontade de esmagar aquele rosto, de apertar os dedos até sentir os ossos a estalar. Era ódio na sua forma mais pura e incondicional. A simples presença de Inês nas ruas era ofensiva para alguém como ele. A sua existência, a grande afronta. Sentia perante ela o que tantos sentem diante das serpentes, aquele automatismo que os faz olhar em volta e pegar no calhau adequado. Esmaga-se a cabeça de uma cobra porquê? Pelo medo do mal que ela possa fazer? Pela mera repulsa que olhá-la causa? Porque é um ritual imposto por Deus aos humanos? Ele estava a olhá-la e não conseguia parar de a odiar. Aquela beleza não era para ele erótica, não o excitava dessa maneira, não desejava vencer a beleza possuindo-a, mostrar a sua superioridade derramando sobre ela o seu sémen com o mesmo desprezo pelos espermatozóides que sentia ao ejacular encostado a uma parede. Não. O que ele sentiu naquela noite ao ver o rosto de Inês, o corpo de Inês, os seus caracóis e o seu ar de plenitude serena foi uma ânsia de extermínio, o impulso genocida, como se a sobrevivência da sua espécie dependesse do extermínio de outra.

No último instante, um qualquer lampejo de razão iluminou a mente perturbada do rapaz. Ela viu a dúvida instalar-se no seu semblante, já tão complexo, tão contraditório, como se ele agora lutasse consigo próprio, o diabo pendurado numa orelha e um anjo na outra.

Zangado agora também com a sua própria hesitação, o rapaz largou o rosto de Inês e, de mão aberta, desferiu-lhe uma bofetada tão forte que a fez rodar e estatelar-se no passeio.

— Foda-se! — ouviu-o ela gritar, meio ensurdecida com o golpe. Era como se ele e tudo o que a rodeava estivessem muito longe, sentia uma zoeira na cabeça e a visão turva. Quase perdeu os sentidos.

Aquilo não fora a grande catarse que o rapaz esperava, a redenção pela força, a ascensão a um novo estádio. No último momento contivera-se. Mas a pequena explosão libertou energia suficiente para que, no meio da sua frustração, ele aceitasse retirar como de uma batalha vitoriosa na grande guerra que travava.

Inês viu-o afastar-se com as mãos na cabeça, sacudindo os cabelos, o som dos seus passos inaudível, o mundo a regressar custosamente. Depois olhou para o namorado, lentíssimo a estender-lhe a mão para que ela se levantasse, lentíssimo a abraçá-la, ainda meio petrificado (embora tremesse furiosamente), à espera de que ela o acordasse daquele pesadelo terrível com um beijo, que o confortasse com as suas palavras meigas, lhe dissesse que estava tudo bem, ninguém poderia ter feito nada. Não saiu em perseguição do agressor, não pensou por um minuto em vingá-la, fosse de que forma fosse. O namorado não era de um tipo efeminado, nem frágil, mas não teve qualquer reacção. Ela não o culpou. Viria a desinteressar-se dele pouco tempo depois, talvez também por isso, mas não com ressentimento.»


In Aranda, RAA